O que é ser normal? O conceito de normalidade é algo discutido profundamento entre profissionais da área da saúde. São eles quem têm de tomar cuidado para não patologizar a vida e encaixar o sujeito em padrões considerados negativos. Basta um número de características e um pouco de sofrimento para se tornar uma pessoa doente, parte da parcela moribunda da sociedade. Mas até que ponto isso é válido? Quando termina o interesse de promover a saúde e começa a rotulação da pessoa por sua individualidade? “Girl, Interrupted” é uma prova viva dessa questão, o recorte da vida de uma garota com Transtorno de Personalidade Borderline.
Susanna (Winona Ryder) é uma garota com problemas. Ela não sabe o porquê deles nem quando eles aparecem, ou ao menos o que está sentindo. É uma confusão de pensamentos, emoções, ações e sentimentos que deixa ela e todos a sua volta preocupados ou simplesmente incomodados. Na falta de informação dos Anos 60, a solução encontrada é enviar Susanna para uma casa de repouso, onde ela entra voluntariamente, mas vê que não pode sair tão fácil. O espaço de acolhimento na verdade é uma instituição mental cheia das pessoas invisíveis pela sociedade. Num lugar desses só existem duas opções: rebeldia ou passividade. Susanna e Lisa (Angelina Jolie) sabem bem qual escolher.
Histórias baseadas em fatos reais como essa costumam esconder uma coisa ou outra por trás do que é mostrado. No caso de “Girl, Interrupted”, existe um livro escrito pela própria personagem principal que conta os eventos mostrados aqui e mais: é o relato de alguém que vivenciou tudo aquilo, a marca pessoal da autora ali. Outra coisa é o conflito entre realidade e ficção. Ser fiel ao que aconteceu ou reformular a história para um maior impacto? Os eventos que ocorrem em nossas vidas podem parecer extraordinários, mas é só porque nós vivemos eles. No papel ou na tela as mesmas coisas tão incríveis podem ser banais; a diferença entre presenciar um assassinato e ver alguém morrer num filme mostra isso bem. Involuntariamente, este longa traz outro debate: as mudanças vistas aqui valem a pena? A autora dirá que não e eu vou ter de concordar. Neste caso específico, elas se destacam negativamente por serem absurdamente artificiais. No entanto, não acho que mudar uns detalhes seja um crime quando fazem bem à obra.
Mas devo valorizar o que tentaram fazer com essa proposta de mudar a trama. O grande espaço entre começo e fim que chamam de meio perde um pouco o fôlego, dando a impressão de monotonia da trama. Colocar eventos que não existiram de verdade foi uma forma que o diretor e roteirista, James Mangold, encontrou de dar estrutura para o enredo, colocar algo ou alguém em risco para que exista antecipação por uma conclusão. O problema é que justamente nessa parte o filme desanda. Há o lado bom de que essa mudança de tom dá uma revigorada no ritmo. Por outro lado, todo o toque pessoal deixado pela autora se perde nesses novos eventos , os quais deixam totalmente claro qual sua finalidade no filme. Uma cena de “O Mágico de Oz” passa na TV, Dorothy descobre que o poder para voltar ao Kansas estava dentro dela o tempo todo. Sugestivo, para um filme que fala de doença, tratamento e recuperação. Não só isso, pois esses problemas deixam para surgir justamente nos dois últimos atos do filme — clímax e conclusão. Exatamente o ponto onde os sucessos são maravilhas e fracassos são desastres.
A história realmente fica meio um dia após o outro mesmo, mas é apenas natural que seja assim quando a história surgiu de um livro de memórias. “Girl, Interrupted” deixa para brilhar em seus personagens e nos atores que os interpretam. Winona Ryder demonstra que sua afinidade para interpretar personagens instáveis não se limita a “Stranger Things”, entregando outro tipo de loucura aqui. Seu Transtorno Borderline pode não dizer muita coisa aqui e talvez continuará não dizendo depois do filme — uma vez que muita coisa fica de fora ou mal explicada — porém Winona Ryder faz um excepcional trabalho em representar o conflito interno da protagonista. Não interessa muito o fato do roteiro falhar em expor sua grande questão de auto-imagem. Felizmente, ela não precisa esmiuçar razões por trás de seus atos para que sua dinâmica pessoal funcione; ou seja, para que ela seja uma boa protagonista. Angelina Jolie consegue fazer um trabalho ainda melhor, não podendo estar mais perto de merecer sua vitória no Oscar. Lisa, sua personagem, abre um leque muito maior para que a Jolie atue e ela aproveita essa oportunidade com gosto. Lisa é mais escrota, terrível e detestável; interessante, acima de tudo. Enquanto Susanna é mais introspectiva, Lisa mostra que sabe o que toca a alma das pessoas. Cutucando-a com uma adaga e toda a impiedade do mundo, isto é. Ela brilha por si sendo uma personagem com personalidade, alguém que pode ser chamada de genuína e, mais do que isso, é um belo contraponto para a protagonista. Através de personalidades opostas, Susanna se desenvolve como pessoa e progride quando a trama parece parar e até cometer deslizes.
Mas talvez o maior valor das atuações seja o fato delas transmitirem o lado pessoal da história de vida de Susanna Kaysen. Os atores seguram as pontas mesmo quando o filme torna-se artificial pelas modificações do roteiro. O elenco todo, especialmente as duas mulheres principais, garantem que a história tenha um ar de intimidade sobre si, essencial para um filme pessoal como esse. É o que acaba sendo o ponto mais forte de “Girl, Interrupted”. Não é nenhuma obra-prima, mas tem seu valor na ótima escolha de suas atrizes.
1 comment
caramba, adorei o texto, muito bom!!