Um dos grandes dilemas desta onda de filmes de super-herói é fugir de fórmulas para não matar o gênero inteiro no processo. Com tantos heróis e vilões para introduzir, como sair do padrão da história de origem? Quem mais sofreu nesse processo com certeza foi o Homem-Aranha, que teve a mesma história contada novamente após 5 anos de seu último filme. Tudo bem, existe uma questão de direitos autorais e “Homem-Aranha 3” não ter sido algo para se orgulhar, porém a poeira ainda nem havia baixado direito para uma nova dose da mesma coisa. “Doctor Strange” usa uma figura menos conhecida da Marvel como protagonista, uma que foge do típico modelo de sempre. Mas será que vinga?
Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é uma das estrelas do lugar onde trabalha. Competente, mas inexoravelmente arrogante, ele faz o que for preciso contanto que o resultado traga fama e fortuna. A retribuição logo chega para um homem que só trabalha para si mesmo no serviço aos outros: um grave acidente de carro tira o poder das mãos do cirurgião. Com a fonte de seu talento destruída, Stephen parte para o Nepal em busca de curas alternativas para suas mãos. O que ele encontra lá, no entanto, é muito maior que ele e seus problemas.
“Doctor Strange” não é um filme ruim, ainda está muito longe dos piores filmes de super-herói que saíram por aí. De certa forma, ele não é muito diferente de “Homem-Formiga“, do ano passado; o que não é dizer muito quando praticamente todos os longas da Marvel seguem uma fórmula. Não comparo literalmente pelas histórias serem bem diferentes, mas ambas compartilham uma certa criatividade em sua execução que os difere de outras obras como “Avengers: Age of Ultron“, que já segue um conjunto mais claro de regras. Aqui os personagens usam magia, não superforça, algo que a produção quis aproveitar ao máximo. Vão além de uma questão de feitiços e encantamentos — frequentemente nomes enfeitados para bolas de fogo — quando baseiam o design de produção nos limites da magia, ou seja, não há limites. Ainda existe o uso mais simples dela para coisas como flutuar e lutar, mas não são estas que chamam a atenção. As melhores são a representação da criatividade espacial propriamente dita, cenas criativas que modificam o ambiente a ponto de torná-lo o verdadeiro astro das sequências; os personagens ali são só detalhes naquela magnitude surreal. Algumas manipulam a cidade como se fosse feita de papel, transformando retas em curvas e tudo em um labirinto no estilo de “Inception”; outras voltam para a simplicidade a aproveitam todo o sucesso que uma luta entre fantasmas pode render.
Os problemas começam quando algumas cenas mostram o mesmo talento na criação de um novo ambiente bizarro para um fim duvidoso. Particularmente, fazer cidades inteiras se contorcer, dobrar e deformar perde boa parte de seu impacto inicial quando os personagens se reúnem para apenas sair no braço novamente. Diferente de “Captain America: Civil War“, não encontrei uma direção tão competente nas cenas de luta frequentemente desinteressantes. Dar chicotes mágicos e escudos luminosos não fazem muitos favores a uma coreografia que não envolve o espectador. Não é nem uma questão de esperar as acrobacias de uma Viúva Negra, pois essa não é a proposta; os personagens estão mais para magos que para mestres de artes marciais. Imagino que a produção sabia disso quando fez “Doctor Strange”, o que não impediu ela de continuar insistindo nesse ponto. Stephen Strange é claramente um novato aqui. Ele apanha, sofre e ainda ganha no final das contas, é mais beneficiado pelo roteiro do que mostrado como um novato criativo ou mesmo sortudo. A falta de planejamento ou mesmo noção do perigo que enfrenta alimenta um protagonista com pouco destaque na hora da ação, a qual poderia ser muito melhor se o universo da magia fosse aproveitado a fundo. É a falta de experiência e habilidade que nivelam um pouco a ocasional decepção com as cenas de ação, ponto em que a Marvel dificilmente erra e deixa a desejar aqui.
O principal problema de “Doctor Strange” é ele ser um filme desproporcional. Num mar de histórias de origem anuais, uma tendência é perder menos tempo com os detalhes e partir logo para a ação. Isso faria todo o sentido em uma nova história do “Homem-Aranha” — que caminha para uma nova ressurreição, dessa vez nas mãos da Marvel Studios. Os filmes não fazem parte da mesma cronologia, porém o público continua com uma faculdade mental frequentemente ignorada chamada memória. Todos sabem do Tio Ben e o lema do herói, o que importa numa situação dessas é apresentar as novidades. “Doctor Strange” não é um desses casos. Seu universo se difere bastante do que é visto em outros heróis. Ele não passou por um evento extraordinário que lhe dá poderes, tudo aqui é baseado na noção de magia — explicitamente diferenciada do simples super-poder. Este é um mundo de várias dimensões, multiverso, artefatos mágicos e coisas sem explicação lógica, muita informação para um roteiro apressado em contar sua história. Existe um momento definitivo para a competência de Stephen, outro para sua negligência e um para escancarar sua arrogância. Todos são bem executados, mas numa visão geral são insuficientes. O filme logo mostra o Doutor com poderes sem dar tempo para o espectador entender qual a função de um mago ali; se apressa para avançar a história quando esta é superficial e ainda mais sem todo o suporte dos detalhes ignorados. Estabelecem um campo fantástico para uma cena de ação para entregar mais um mano-a-mano, correm com uma trama rasa que tem bem menos a dizer que o universo em que está inserida.
A repetição da dose de um vilão fraco dá continuidade a uma inclinação cada vez mais clara da Marvel em criar vilões ruins, certamente não ajudando a trama carente de pontos cativantes. Os sucessos de “Doctor Strange” acabam limitados a seu personagem principal e algumas cenas de ação incríveis. Sem Benedict Cumberbatch, Stephen Strange não teria metade de seu poder quando o roteiro permite que ele atue, com destaque para as cenas em que a arrogância do personagem é exaltada. Já as cenas de ação mostram-se um pouco ambíguas: algumas entregam porrada descartável, ao passo que outras casam criatividade com efeitos especiais em momentos que realmente diferenciam a tal magia do super-poder comum.