Antes de dar inspiração a diversos textões de Facebook, Karl Marx disse que o homem é um animal social por natureza. Não há como fugir da sociedade. Por menor que um grupo de pessoas seja, já está acontecendo um fenômeno social; as relações tomam uma boa parte da vida do indivíduo de um jeito ou de outro. Mas quanto disso tudo tem a ver com relacionamentos amorosos? “The Lobster” coloca o dedo na ferida de uma sociedade que quase institucionaliza o romance, mostrando que o amor realmente não é uma ciência exata como alguns entusiastas pregam.
Numa realidade não muito distante da atual, um homem se hospeda num hotel para descansar um pouco e esquecer dos problemas, ou melhor, ser forçado a se livrar do grande fardo que é ser solteiro. David (Colin Farrell) terminou um casamento de 12 anos e acabou sendo enviado para este lugar supostamente aconchegante, mas que na verdade é um tipo de clínica de reabilitação. Neste mundo, as pessoas simplesmente não podem ser solteiras, elas têm a opção de arranjar um par em 45 dias no hotel ou se tornar um animal a sua escolha. Para David não é diferente: ele deve começar a se relacionar com alguém ou se tornar uma lagosta.
Falar as coisas objetivamente e de forma clara é a melhor coisa que podemos fazer na maior parte das situações. Um texto crítico como esse não seria muito eficiente se ao fim dele o leitor não entender o que achei do filme. Porém dizer o que realmente queremos nem sempre é a coisa mais fácil do mundo, às vezes é difícil traduzir em palavras sentimentos e vontades, especialmente quando expressá-los tem seu risco. Por outro lado, essa lógica é quase o oposto no cinema. A saída fácil, se posso dizer, é simplesmente revelar o significado de uma vez. Um cineasta que quer criticar o governo poderia criar uma história de rebeldes lutando contra um ditador tirano ou, quem sabe, simplesmente fazer seus personagens verbalizar esse ódio. “The Lobster” evita o caminho do óbvio e parte para os campos acidentados da metáfora. Afinal de contas, levar a premissa ao pé da letra não é exatamente a melhor forma de absorver suas mensagens.
Usar uma história explicitamente bizarra como essa não é uma escolha arbitrária. Por trás da extravagância há uma porção de significados e o mais importante: a proposta de um diálogo. “The Lobster” não é um filme que expõe seu ponto como palavra final e deixa quem assiste pensar se concorda ou não. Ele até se posiciona em relação ao assunto central da trama, porém dá uma boa margem para o espectador desenvolver sua própria opinião. A intenção aqui não é ditar regras sobre como as pessoas devem se portar, apenas apresentar um ponto de vista exagerado e incisivo sobre essas mesmas regras que tentam pregar.
A melhor parte de toda essa proposta é que ela funciona sem parecer uma mensagem mal criada do cineasta ou um estudo de caso acadêmico, totalmente desprovido de emoção. O diretor grego Yorgos Lanthimos brinca com o assunto como alguém que tem total segurança de sua posição. Sem medo de dizer o que quer, o diretor disseca as instituições e normas sociais com um roteiro que escancara os podres de forma irônica. No universo da trama, até os solteiros são tratados com a mais absoluta seriedade, mesmo com eles se agrupando na floresta como um grupo de guerrilheiros vietnamitas. Enquanto isso, os funcionários do hotel dão demonstrações de como um indivíduo é vulnerável quando está sozinho: uma mulher sem um parceiro é estuprada da maneira mais mal atuada de todos os tempos e ainda recebe aplauso da platéia. Se alguém ri de tudo isso é quem assiste, pois a graça vem da exposição dos ridículos dessa sociedade que racionaliza o amor.
A surpresa aqui vem justamente por parte do roteiro e do elenco: um não falha em ousadia e o outro entra de cabeça na brincadeira. Como disse, o roteiro de “The Lobster” faz mais do que apresentar extravagância e um ponto de vista, é toda uma proposta curiosa de reflexão. Embora exista um certo humor ali, ele vem do prazer de ver crenças sendo destruída, não do enredo propriamente dito. Isso acontece porque o elenco está extremamente bem entrosado e imerso naquela distopia sentimental, sem dar sequer um indício de desleixo ou descrença em relação aos personagens que interpretam. Sejam os personagens menores — como a camareira que provoca os apetites sexuais dos hóspedes como parte do trabalho — ou os maiores, permanece o sentimento de compromisso com o papel; com destaque para Colin Farrell numa atuação surpreendentemente boa. Enquanto os pequenos chamam a atenção por executarem suas rotinas de forma diligente, o protagonista de Farrell é explorado mais a fundo. Colocam ele numa posição mais próxima do espectador, alguém mais humano, que questiona e experimenta aquela realidade de forma mais independente e menos automática que o resto do elenco. Acima de tudo, fica fácil se relacionar com aquele universo quando o olhar do protagonista está alinhado com o de quem assiste. A experiência torna-se como uma exploração em primeira mão, ao contrário de uma observação passiva e sem graça.
“The Lobster” tem uma proposta interessante, uma premissa incomum e um conteúdo subliminar impressionante. Pode parecer bizarro demais da conta para alguns, mas acredito que toda a grande metáfora deste filme se apresenta de forma clara o bastante para que ninguém estranhe uma pessoa se transformando num pônei. O elenco assegura que as coisas não saiam do controle: o protagonista mantém certo senso crítico, o resto do elenco mostra justamente a devoção questionada por ele.
1 comment
Você consegue transmitir o que penso de modo prático usando as palavras, isso é ótimo, obrigado e parabéns!!