Enquanto “Cassy Jones – O Magnífico Sedutor” não me deixou exatamente empolgado pelo trabalho de Luís Sérgio Person, “São Paulo, Sociedade Anônima” — também chamado de “São Paulo S/A” — foi totalmente mais feliz nessa proposta. Havia ouvido falar dele diversas vezes durante o festival, mas tantos comentários conseguiram, de alguma forma, deixar de lado as inúmeras qualidades deste merecidamente chamado clássico brasileiro. Até hoje considerado o melhor trabalho de Person, ele é facilmente parte do melhor que o cinema brasileiro tem para oferecer. É uma história completa, que nunca se limita nas abordagens — como o uso do humor e da fotografia — para chegar onde quer.
Com é sugerido pelo título, “São Paulo, Sociedade Anônima” se passa numa São Paulo em plena expansão industrial. A indústria nacional ganha força, especialmente na área automobilística, trazendo uma era de ouro para a economia do país. No entanto, tanta ordem e progresso não trazem consigo satisfação e Carlos (Walmor Chagas) abandona mulher e filho depois de uma discussão. Não se sabe o porquê, mas aos poucos a história de Carlos é revelada; mais especificamente o período em que trabalhou numa fábrica e fez muitas das grandes decisões de sua vida, que não necessariamente o fizeram um melhor homem.
Colocado no centro da história, Carlos carrega o fardo de transmitir virtualmente todos os valores da história e consequentemente capturar o interesse de quem assiste. É uma tarefa árdua, sem dúvida, mas que é realizada com competência. O personagem de Walmor Chagas seria visto como um verdadeiro cara chato numa situação normal. Reclama de tudo, é grosseiro e egoísta. De um jeito que foge à minha compreensão, ele ainda consegue ser aceito pelos outros, chegando a casar-se no meio do caminho. Mas ele é chato apenas na ficção. O espectador, felizmente, mora no mundo real e lá Carlos é tudo menos desinteressante. Para o público estrangeiro pode não ser a mesma coisa, enquanto para mim e para o público brasileiro, imagino, muito do que ele faz acaba sendo mais impactante. Retrucadas irônicas, eventuais gírias e modismos brasileiros estão presentes no personagem que não poderia ser um melhor veículo de transmissão da história. Ter muitos defeitos é a característica definitiva de Carlos e por esse mesmo motivo é tão fácil se relacionar com ele. Ele se distancia da figura arquetípica do herói para assumir uma postura mais humana sem nunca documentarizar — ou seja, levar-se muito a sério — a história. Ambos os pés estão bem plantados na ficção.
Assim se cria a figura do protagonista amavelmente detestável, que faz coisas questionáveis sempre deixando espaço para o apreço do espectador. Por mais que não se concorde com os atos, é difícil não reconhecer o conflito ali. Walmor Chagas entrega uma atuação sólida por saber medir quais são os sentimentos apropriados para cada momento. Existe hora para humor e hora para grosseria, ao passo que o personagem nunca sai da linha o bastante para perder a personalidade que criou; caracterizando-se assim como um dos raros exemplos de personagem que você quase pode chamar de pessoa de verdade. Carlos é apenas Carlos e não há nada indicando que ele seja produto da ficção. Se personagens não são humanos, acredito que ele seja uma ótima metáfora para um ser humano, como diz a teoria da escrita de roteiros.
O que se destaca de melhor aqui é também um dos aspectos mais sutis: “São Paulo, S/A” sabe apresentar os problemas da história sem necessariamente falar deles. Claro, alguns momentos de desespero colocam personagens falando explicitamente o que está em suas alma, o que não poderia ser diferente num filme sobre o conflito entre progresso econômico e declínio humano. A atmosfera aqui é sempre pesada, abusando do contraste na fotografia em preto e branco para destacar ou fundir a figura do protagonista no ambiente. Na cidade cinza ele é quase um corpo estranho com seu terno preto totalmente nítido, enquanto em alguns closes seu rosto praticamente se mescla com o branco da parede. Dificilmente isso foi sem querer ou reflexo de um rolo mal cuidado, pois esse toque estético faz todo o sentido com um dos grandes conflitos da obra: Carlos se vê preso entre começar uma vida nova para romper com a cidade e já fazer parte dela sem saber. São pequenas minúcias desse tipo — assim como a narração ocasional e certeira — que fazem o espectador ficar sempre com um sentimento de que há algo errado. Pode até demorar um pouco, mas eventualmente se enxerga que sucesso e fracasso, aparentemente opostos, caminhavam juntos o tempo todo.
“São Paulo S/A” é uma obra com pouco espaço para decepções. O roteiro esperto de Person dá muitas voltas e, em teoria, é uma série de flashbacks da vida do protagonista, que expõem quais eventos levaram até o enigmático início do filme. Felizmente, essa proposta dá muito certo num mar de possibilidades infelizes e resulta no melhor filme brasileiro que vi nos últimos anos, de longe.