Começar este texto dizendo que “Barry Lyndon” é uma obra celebrada de Stanley Kubrick é quase um pleonasmo, considerando que a maioria esmagadora de seus filmes são adoradas por um grupo considerável de pessoas. Dizer que ela possui uma estética sem igual também seria uma afirmação tão vazia quanto, uma vez que essa é uma qualidade que persegue o diretor. Como descrever este longa apropriadamente, então? Singular é um bom começo. A história do Século 18 de Kubrick não é seu melhor trabalho e muito menos o pior, mas com certeza evocará sensações únicas no espectador tão logo que entra em cena o cinema extravagante do diretor.
O mesmo pode ser dito do próprio diretor, talvez. Ele não está entre meus cineastas preferidos, embora seja um artista autenticamente original. Dou a ele este mérito e outro pleonasmo para reforçar meu ponto. Seu trabalho inspira diversos fãs de cinema a procurar pelos menores detalhes em seus filmes e, surpreendentemente, todo esse alarde é justificado. Em “Barry Lyndon” por exemplo, ele retoma algumas de suas famosas noções de espaço físico e arquitetura para amplificar o drama — usado aqui como termo geral — de diversas cenas. Curiosamente, são detalhes como estes que tornam profundo o trabalho do diretor; minúcias tão subliminares que são sentidas o tempo todo sem fazer suas presenças serem notadas e ainda assim mantêm seu impacto. Apenas alguém que as procura notará que tudo não foi produto do acaso. Stanley Kubrick associa novamente o útil ao agradável com uma direção inteligente. Captura as imagens exatamente do jeito que quer sem nunca perder o glamour de composições belas, assim criando o tal efeito subliminar de seu trabalho. Afinal de contas, quem vai procurar por linhas de horizontes, pontos de fuga únicos e uma mise-en-scène meticulosa quando sets do mais alto nível e paisagens estupendas ilustram tudo isso? Não é uma proposta intuitiva, embora os interessados descobrirão que usar uma lente de longa distância focal faz toda a diferença numa tomada de soldados marchando. Deixar os objetos aparentemente mais próximos dá o toque de ordem que a cena pede.
Mas do que “Barry Lyndon” se trata exatamente? Bem, nada mais que a vida de Barry Lyndon (Ryan O’Neal). De uma família pequena no interior da Irlanda surge Redmond Barry — nome de nascença do protagonista — um garoto idealista e diferente dos outros rapazes de sua idade. Ninguém sabe o que ele realmente quer para sua vida, apenas o que ele deseja no aqui e no agora, Sua primeira obsessão de vida é sua prima, a qual ele deseja intensamente. Infelizmente, o mundo não costuma estar inclinado a concordar com Barry e lança ele numa jornada sem destino. Este é o conto da ascensão e queda de um humilde rapaz que conquista coisas que homens sonham a vida toda, mas não necessariamente ele.
Dualidade não é exatamente um tema central para a trama, ainda que tenha sua presença. É na parte técnica — mais especificamente na narração — que essa dualidade tem sua influência melhor notada, para efeitos positivos ou negativos que sejam. Positivamente aponto a maneira como Kubrick iconicamente molda sua história, como era esperado. Olhando as imagens e como Kubrick as captura nota-se, como apontado antes, que aquilo só pode ser trabalho de um artista genuíno. As paisagens parecem terem sido escolhidas a dedo e têm uma atmosfera parecida com a imagem do caubói contra uma imensa planície ensolarada, exceto que ainda mais bonito e com cores mais diversas. Não bastasse esse horizonte naturalmente belo, há ainda um grande papel exercido pela graduação das cores. O laranja de uma vela no escuro e o verde de uma vegetação são tonalizados com menos contraste e dessaturados para criar um efeito renascentista, tornando o que seria lindo num filme de David Lean em verdadeiras pinturas a óleo em movimento. Isso diz um tanto sobre o lado artístico e, consequentemente, sobre a tendência deste filme ser classificado como belo ou filme-arte. E o que diabos isso tem a ver com uma narração sóbria, característica de documentários? Pouco, eu responderia em qualquer outra ocasião, mas aqui essa combinação funciona surpreendentemente bem na maior parte do tempo.
Até certo ponto, apenas. Há um limite para este contraste bizarro funcionar. Não porque a arte é incompatível com a sobriedade do documentário, mas porque a narração por vezes entra em desacordo com a narrativa de Kubrick. De fato muito da narrativa acontece por meio da narração, enquanto o resto se encontra nas imagens propriamente ditas — atuações inclusas. Não vejo problema na narração quando ela tem um papel suplementar e às vezes até complementar às imagens, contanto que não substitua as imagens como principal mecanismo narrativo. Neste caso há um pouco disso na primeira metade da história — que também sofre por ser a parte menos interessante da jornada de Barry — e outro aspecto um pouco mais grave: um certo conflito entre o que os atores transmitem e o que é dito pelo narrador. O elenco pouco conhecido, porém competente, é dirigido de maneira fina por Kubrick e assim se coloca em sintonia com o que o diretor procura transmitir. Para mim isso caracteriza uma narrativa sutil, que guarda detalhes e não expõe seus personagens à toa porque isso simplesmente não é da natureza deles. Eles guardam segredos, escondem fraquezas, são dissimulados e frágeis dentro de uma personalidade impecável. No entanto, há uma voz do além que está sempre ali. De vez em quando suas palavras são sábias, dando pinceladas de ironia em cima da expectativa que o espectador vinha construindo; em outros momentos ela poupa as imagens, faz o trabalho delas desnecessariamente; e ainda há aquelas ocasiões em que o silêncio é sua maior virtude. É uma relação de acerto e erro quase meio a meio; a ilustração do porquê cenas como o clímax e o final funcionam muito bem e outras nem tanto.
Disse antes e repito agora: “Barry Lyndon” não é o melhor de Kubrick. Nem por isso ele deixa de apresentar suas empreitadas extravagantes usando o que o cinema tem para oferecer; cores, lentes, ângulos, atores e o espaço físico estão para ele como as cores estão para um pintor. Stanley Kubrick demonstra que sua capacidade de impressionar não é pouca coisa, ao menos não neste longa-metragem.