Um dos princípios da escrita de roteiro é partir de uma idéia e expandi-la até que ela chegue no produto final. Pode parecer que estou afirmando o óbvio, mas nessa linha de pensamento existe o preceito de que uma frase ou até mesmo uma palavra, em alguns casos, pode definir uma obra inteira. Filmes da série 007, por exemplo, podem muito bem ser caracterizados como: “Uma ameça à ordem mundial é detida porque James Bond é mais perspicaz que o vilão”. “Doubt” é mais curto e grosso. Não é preciso uma frase inteira para definir a essência do filme, o título já diz tudo: dúvida.
Na década de 60, um colégio administrado pela Igreja Católica é governado com punho de ferro. As regras e costumes são impostos rigidamente e a disciplina é alcançada através do medo, especialmente quando a irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep) está envolvida. No entanto, nem isso impede um grande dilema. O primeiro garoto negro da escola tem dificuldades para se misturar com outros alunos — a maioria de famílias italianas e irlandesas — e é acolhido pelos braços fraternos do padre Flynn (Philip Seymour Hoffman). A irmã Beauvier, por outro lado, suspeita dessa relação. Ela acha que há mais do que compaixão cristã por trás dos atos do padre e está disposta a fazer o necessário para provar seu ponto.
Em termos de roteiro, este é um excelente exemplo de como escrever uma história simples e complexa ao mesmo tempo. A idéia que alimenta a trama do início ao fim é uma freira duvidar da boa vontade de um padre. Isso nunca muda e, curiosamente, está para surgir um indício de falta de profundidade neste conflito. Complexo — ou profundo, melhor dizendo — não é a mesma coisa que complicado, então por simples digo que não há ramificações desnecessárias ou arcos desinteressantes que possam prejudicar a obra como um todo. O conflito é mais que uma rixa e a trama mais que uma montagem de discussões, há um embate de ideais que envolve mais que o aqui e agora; pecado, crenças pessoais, virtude, disciplina, tradição e valores são todas peças essenciais para o que é retratado em “Doubt”.
Novamente, o roteiro é parte essencial para o sucesso deste longa, uma vez que os diálogos comunicam boa parte da discórdia latente. No entanto, comunicação envolve também o subliminar, o sutil — aspectos elementares de uma proposta convincente. Caso contrário o resultado não passa de uma leitura de falas na esperança que o espectador se comova. E quem melhor recomendados para a tarefa que Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman? Ambos dão um belo espetáculo de atuação nos papéis principais, amplificando o conflito para além de diversidade semântica cada vez que os temas citados são estampados em ânimos fortes e ambiguidades. Escalar uma briga colossal como essa requer tempo, porém. O atrito começa tão morno quanto um dia numa escola linha dura pode ser: um desfile de vontades reprimidas por penteados milimetricamente arrumados e unhas limpas. Então surge uma faísca de suspeita, um suspiro de evidência da irmã James — outra bela interpretação entregue por Amy Adams — e o tom das conversas rapidamente vai da formalidade à calamidade. Streep sobe nos saltos e Hoffman acompanha sem fraquejar.
Atuações igualmente competentes resumem bem outra qualidade da história: a imparcialidade. Neste filme não há certo ou errado, inocente ou culpado. Não é um conflito unilateral. O roteiro toma um cuidado absurdo para não falar muito ou abertamente demais, sempre há um quê de informação retida em cada diálogo que mantém a tensão no ar. “Não estou te acusando de nada, Padre Flynn, estou pedindo para você me contar o que aconteceu”, diz Beauvier em um momento que reflete bem as voltas dadas para evitar ser direta. Até mesmo atitudes concretas mantêm o espectador na penumbra — nunca no escuro — quando estas dão um jeito de perpetuar a ambiguidade, o tal benefício da dúvida. Fica complicado encontrar verdades absolutas quando tudo que o espectador tem são dois atores no mesmo patamar de imponência, evidências — ou a falta delas — para todos os lados e uma cisma que ninguém querem expor. Com isso, escolher um lado torna-se uma decisão puramente subjetiva, ou melhor dizendo, projetiva. Há uma série de argumentos a favor e contra cada um dos envolvidos, mas nenhuma prova palpável. Cabe ao espectador decidir quais delas pesam mais.
Como a cereja do bolo, o filme ostenta um visual surpreendentemente bom para uma história passada em ambientes tão comuns. Não esperava me surpreender tanto com hábitos de freira e batinas de padre, mas aconteceu. Não só isso, as imagens impressionam também através de ocasionais ângulos de câmera, que quando inclinados para um lado dão um toque especial de instabilidade às cenas de tensão, similar ao que foi feito em “East of Eden“. Surpreendentemente agradável, “Doubt” ainda se destaca por ter sido dado como tarefa de faculdade. Ao menos uma vez na vida os professores não escolheram um longa completamente obscuro para complementar seu plano de ensino.