“Não há trabalho mais difícil na América”. É o que dizem nesta minissérie sobre ser um usuário de drogas. Na visão popular, essas pessoas frequentemente são tratadas como a escória da sociedade, vagabundos sem vida que venderiam os próprios filhos por um baseado. “The Corner” mostra que a história não é bem essa. De fato, as drogas permanecem como um câncer na sociedade, mas seus usuários são muito mais que escravos do desejo, todos possuem uma vida — diferente do que podem pensar. Por trás de cada dose de heroína existe a história de uma pessoa como qualquer outra e é exatamente isto que este seriado procura expor.
A história toda vem do livro “The Corner: A Year in the Life of an Inner-City Neighborhood”, escrito por David Simon e Ed Burns e publicado em 1997. Sim, o mesmo David Simon que criou “The Wire” também trabalha no roteiro desta minissérie junto de David Mills. Dividida em 6 episódios de aproximadamente 1 hora, “The Corner” foca numa família do Oeste de Baltimore. Antigamente, o bairro em que moravam era próspero e tranquilo de se viver. Com o tempo, entretanto, o crime e as drogas foram tomando conta e mudaram a vizinhança completamente. As ruas onde crianças brincavam são povoadas por adolescentes vendendo drogas nas esquinas — chamadas corners, em inglês — e drogados perambulam procurando um jeito de sustentar seu vício enquanto a polícia e o tráfico colocam a sociedade no fogo cruzado de seu eterno conflito. Perdidos nisso tudo estão Gary McCullough (T.K. Carter), sua ex-esposa Fran Boyd (Khandi Alexander) e seu filho DeAndre McCullough (Sean Nelson); entre lutas contra o vício, contra as drogas e todo o estilo de vida que vem junto, estes três personagens tentam resistir aos males de sua situação atual e viver uma vida normal na medida do possível.
Quem não viu “The Wire” pode começar tranquilamente por “The Corner” se quiser ter uma noção do que esperar. O escopo é menor e mais focado em um pequeno grupo de personagens, o contexto — cidade, população e esfera social — é o mesmo, mas, de tudo isso, o que é mais parecido é o realismo ríspido desse retrato. Especialmente nesta minissérie, onde cada pedaço de verdade sórdida é verdade mesmo; tudo foi baseado na experiência do próprio David Simon na esquina entre a Rua Fayette e a Rua Monroe. As semelhanças são muitas, então acredito que se o espectador gostar do que é mostrado aqui, não há porquê não conferir a obra-prima chamada “The Wire“, na qual tudo o que é visto aqui é expandido para uma história épica de 5 temporadas. Neste último, tudo vai para o lado da ficção, mas com um propósito: amplificar a força do argumento de Simon. É fácil dizer qual dos dois é superior, especialmente quando um deles é o meu seriado favorito, porém crédito é devido a “The Corner” por suas várias conquistas.
Independente de se tratar de uma história real, a abordagem não tem nada a ver com um documentário e suas diversas convenções e formalidades — exceto por entrevistas no começo e fim dos episódios, em que o diretor faz perguntas aos personagens da história como se fossem suas contrapartes de verdade. Como no livro, tudo é contado como se fosse uma grande estória— não história, aponto para o caráter fictíticio mesmo — um conto na vida de uma família da periferia de Baltimore. Isso pode levar alguém a pensar que as coisas são exatamente como descrevi o próprio “The Wire“, contudo, há um diferencial: saber que Gary, DeAndre e Fran são todos reais dá maior profundidade aos eventos retratados. A veia perfurada pela seringa não é de qualquer um, é a de Gary McCollough, um ser humano que realmente passou por isso. Provar isso é desnecessário, qualquer busca no Google já mostra meu ponto, então só deixo o fato de que o próprio DeAndre da vida real fez uma ponta no outro seriado de David Simon, já citado antes.
Como contar uma história real de forma fictícia e torná-la maior que o mundo, então? Com um roteiro bem direcionado e um elenco forte para fazer jus aos conflitos e dilemas da vida daqueles personagens, é claro. Muitos atores da obra-prima de Simon têm papéis em “The Corner”, o que por si já diz muito sobre a qualidade do elenco. Dentre eles, vale destacar Clarke Peters como Fat Curt, vendedor e viciado em heroína, uma figura que tem um papel importante para o desenvolvimento do trio principal sem estar ligado a eles tão diretamente. Ele não mora com nenhum protagonista, não é amigo próximo de nenhum e ainda consegue dar chão para alguns dos momentos mais fortes de Gary e Fran, por exemplo. Com influências mais sutis e de grande impacto, seu personagem constrói todo um universo através de sua autenticidade. Fat Curt não é apenas um velho drogado, ele é parte da Fayette com Monroe.
Curiosamente, justamente o trio principal não tem nenhuma participação sequer em “The Wire“. Justo os três atores mais proeminentes de “The Corner”. Prefiro imaginar que sua ausência é, de certa forma, justificada pelo bom trabalho que fizeram aqui. Suas performances são tão icônicas que talvez tenham achado que o público confundiria os papéis de um seriado com os de outro, que DeAndre é um soldado de Avon Barksdale quando ele provavelmente serviu de inspiração para vários destes mesmos soldados. Não, DeAndre é seu próprio personagem, isto é, com Sean Nelson interpretando sua pessoa perfeitamente. Sozinhos, os personagens têm sua cota de méritos por possuírem nuances de personalidade que os tornam mais do que a mencionada opinião popular os caracteriza. Gary tem um problema sério com drogas e nem sabe como lidar com ele direito; Fran está no mesmo caminho e ainda tem de segurar barra de cuidar de dois filhos; enquanto DeAndre tenta se manter longe da precária vida nas ruas, que coloca tantos jovens no front do tráfico de drogas. A genialidade deles vem à tona quando os três estão juntos, ou melhor, quando são vistos como um tipo de unidade familiar naquele ambiente. Fran cobra de seu filho valores, bons modos e uma vida que traga um bom futuro, mas que exemplo ela dá? A casa que divide com os irmãos não tem nem um traço de bom futuro, quem dirá seu uso frequente de heroína e outras drogas.
Ter uma perspectiva boa dentro de um ambiente como esse é difícil e a história trabalha exatamente com isso. Numa história comum, o herói normalmente tem uma chance em um milhão para atingir seu objetivo e no fim, normalmente, o alcança. Em “The Corner” esta chance é apenas uma luz moribunda no fim de um túnel traiçoeiro. Não há pessimismo na parte dos roteiristas, apenas a realidade. Não direi que é uma visão agradável ou divertida de uma realidade dura, mas sim que é um ponto de vista privilegiado para os interessados.