A história de um grupo de pessoas estranhas em uma carruagem pode muito bem ser comparada ao “The Hateful Eight” de Quentin Tarantino. Bem, vindo de um um diretor que usa tantos filmes antigos como inspiração, não é surpresa que um dos Faroestes mais influentes de todos esteja nesse meio. Mas isso vale apenas se eu falar hoje em dia, mais ou menos 77 anos depois do lançamento original. Antes disso, “Stagecoach” já tinha seu próprio valor por ser o primeiro grande longa-metragem de John Wayne, a estréia de John Ford no cinema com som e a primeira de vinte e uma colaborações entre Wayne e Ford.
Como minha comparação insinuou, esta é a história de um grupo de pessoas diferentes que são obrigadas a dividir um mesmo ambiente. Todas partem em direção a cidade de Lordsburg, cada uma com seu próprio motivo e personalidade. No mesma carruagem, também chamada de diligência, estão: um médico bêbado e uma prostituta que são expulsos da cidade; um pistoleiro que se diz cavalheiro; uma moça da alta sociedade; um banqueiro prepotente; um reverendo simplório; o condutor e um oficial de justiça que se junta ao bando na esperança de capturar um fugitivo.
Como se pode imaginar, este não é um filme de Aventura com as mais variadas confusões no caminho, ainda mais por ter sido feito em 1939. O que também não quer dizer que a viagem destas nove pessoas seja um passeio no parque. Sobre todas as tensões entre passageiros existe a ameaça do índio Gerônimo e seu grupo de guerreiros. No entanto, isto é mais um detalhe na profundidade da história que qualquer outra coisa, um artifício mais importante pela sombra que projeta do que pela sua própria presença. Esta constante ameaça dos índios serve muito bem para dois propósitos. Um deles é o mais óbvio: despertar no espectador a expectativa pelo grande tiroteio, comum em Faroestes. O outro, e mais importante, é o que esta ameaça representa para membros diferentes do grupo. Basicamente, o carvão para o fogo dos conflitos entre eles.
É neste ponto que entra o motivo desta obra ter sido comparada a “The Hateful Eight“: as duas obras têm sua genialidade resumida ao modo como os personagens interagem entre si. Forçados a ter contato com pessoas que mal conhecem num espaço que não dá lugar nem para pensamentos, os passageiros são tirados de sua zona de conforto, submetidos a um ultraje que não é frequente para eles. Caubóis lidam com uísque e espingardas, bancários com dinheiro e documentos, damas com cafés da tarde e prostitutas com sexo. Tudo indica uma história banal, mas o estranhamento de um personagem médico ter de ouvir política e finanças de um homem de negócios funciona melhor do que parece na hora de construir uma boa história.
O roteiro pega personagens essencialmente bidimensionais e os desenvolve a partir de sua relação com o outro. Sozinho, o caubói de John Wayne não passa de um jovem destemido e focado em seus objetivos. Perto de outro pistoleiro ele já se mostra diferente. Não é porque os dois são machões armados que eles tem de compartilhar a mesma personalidade. Em meio a estas interações um grande filme se constrói, principalmente porque por trás de tudo isso há um elenco forte que não deixa nenhuma palavra ser mal dita. Sabendo disso, John Ford faz bem ao dar um destaque mais ou menos uniforme entre todos os envolvidos; criando com isso uma riqueza ainda maior pelos relacionamentos não se limitarem ao protagonista se envolvendo com o grupo. Sendo assim, não é nenhum absurdo considerar este filme algo singular em relação ao gênero Faroeste, pode-se facilmente dizer que não é algo que se vê sempre. Alguns temas centrais permanecem, como a moral e sua relatividade, enquanto outras convenções são deixadas de lado para dar lugar a aspectos já mencionados aqui.
No entanto, não é por isso que a experiência seja prejudicada de alguma forma. Todo o conjunto da obra resiste ao teste do tempo e se mostra um filme bem ritmado, sem se tornar cansativo ou chato pela falta de tiros e momentos de heroísmo. Aliás, dizer falta é até um exagero, pois um dos grandes momentos da obra é um longo tiroteio, completo com façanhas ousadas até mesmo se comparadas com outros filmes de décadas depois. Mais justo é descrever “Stagecoach” como um pacote completo, mesmo que sua abordagem seja diferente do que se vê sempre.