No Oscar desse ano, o apresentador Chris Rock bateu de frente com todas suas forças contra a controvérsia do “Oscars So White”, um movimento em que vários atores e cineastas boicotaram publicamente a cerimônia por nenhum negro ter sido indicado. Chris Rock foi contra essa onda e fez tantas piadas quanto podia sobre negros, brancos e sobre filmes que foram indicados. Em um de seus melhores momentos, Rock citou a excelente interpretação de Jamie Foxx — que também foi contra o movimento e recomendou que os negros atuem melhor — em “Ray”, dizendo que ele estava tão bem no papel que os médicos desligaram o Ray Charles de verdade no hospital, como se dissessem: “Não precisamos de dois desses”.
Polêmico ou não, certo ou errado, o apresentador acertou em cheio ao usar o exemplo de Foxx neste filme. Universalmente aclamada, sua performance realmente é um marco no mundo das grandes atuações, pois poucos atores realmente entram na pele de seus papéis como ele fez. A história contada aqui é a de Ray Charles Robinson, um garoto de família pobre que ficou cego enquanto criança e eventualmente tornou-se um dos maiores artistas de todos os tempos. Com mais ou menos 2 horas e meia de duração, este filme conta parte do começo humilde de Ray como músico de bandas pequenas até o estrelato dos Anos 50 em diante; não deixando de lado sua complexa vida pessoal — sua vida na comunidade pobre com sua mãe e seu irmão, seus relacionamentos profissionais e amorosos e seu problema com a heroína.
Tirando os momentos em que sua infância é mostrada, nos quais C.J. Sanders interpreta o cantor, Jamie Foxx realmente dá um show de como atuar. Imagine todas as imagens que surgem quando alguém fala em Ray Charles: o cantor cego, o sorriso enorme, as balançadas ao ritmo da música, a voz singular. Difícil pensar em qualquer outra pessoa tentando imitar estes traços e se saindo bem, não? Pois bem, Foxx captura tudo isso e vai além ainda. Mais do que um grande papel por si, encarnar Ray nos cinemas deve ser um duplo prazer quando se tem uma carreira de cantor como Foxx, uma vez que a homenagem é para alguém que provavelmente influenciou sua própria carreira como músico. Sua performance passa longe de qualquer traço de artificialidade, como se ele estivesse emulando algo; fica bem clara a paixão de Foxx pelo seu trabalho e por toda a contribuição de Ray Charles para o mundo da música.
A fórmula de Biografia não traz nenhuma novidade. Nesse sentido tudo é mais ou menos como a maioria dos outros filmes, entretanto, este longa tem sucesso por se sair tão bem em sua proposta comum. Em termos de escopo, pode-se dizer que este longa vai mais longe que a maioria das obras deste gênero. O foco principal é sua ascensão na escada da fama, que é incrementada por várias outras esferas de sua vida, talvez igualmente importantes embora menos populares. Se todas os eventos aconteceram da forma como são mostrados já é outra história, mas neste roteiro eles funcionam perfeitamente, amarrando uma narrativa direta ao ponto com várias conexões ao passado do cantor e estabelecendo pontes para diversos aspectos de seu desenvolvimento. Francamente, pouco me importa se a vida do músico aconteceu dessa forma, o que importa é que a história contada no filme ganha profundidade com as ligações estabelecidas pelo roteiro. De certa forma, foi uma forma inteligente de amarrar os eventos sem que a história tenha uma estrutura estranha, que apresente os eventos de forma expositiva ou até meio alheia.
A única coisa que pode rivalizar a interpretação de Jamie Foxx é a própria música de Ray Charles. E até mesmo ela é muito influenciada pelo ator, uma vez que as canções dependem dele para que sua disposição na história não fique totalmente artificial, tal como num vídeo clipe ruim. Felizmente, momentos de inspiração divina, que dão ao protagonista a música pronta, não existem. Por outro lado, o que pode-se ver são momentos de conflito onde a música só poderia ser a conclusão ideal para um homem que pensa notas musicais. Não só isso, mas alguns dos momentos mais tocantes da atuação de Foxx não se encontram nas nuances crescentes de seu comportamento de dependente químico, mas nessas horas em que a música surge como o resultado de uma complicação amorosa ou de um momento tenro entre um casal. Ouvir canções gloriosas como “Georgia On My Mind” e “Hit The Road Jack” acaba ficando como um prazer secundário quando tanta coisa interessante sobre a vida do artista toma conta da história.
Como apontado por vários outros críticos, não precisa ser fã da carreira de Ray Charles para curtir essa obra. Ela inclusive funciona muito bem como um convite para o grande trabalho dele, que conta com 55 álbuns de estúdio, 7 álbuns ao vivo e pelo menos 20 compilações de seus maiores sucessos. Claro, nem tudo são rosas neste filme, pois ainda há aqueles momentos em que a história real claramente parece ter sido alterada por pura conveniência e outros que apenas ficam meio mal explicados — dão pouco destaque e muita importância. No fim, o saldo ainda é extremamente positivo. “Ray” é um grande filme que não deve nada à figura gigante de Ray Charles.