Quando se fala em filmes cultuados, a associação com sentidos implícitos e profundidade semântica é quase automática. Cada quadro tem potencial para transmitir uma mensagem diferente, um novo insight para reforçar os temas de uma obra, então uma análise profunda frequentemente traz resultados relevantes. “O Discreto Charme da Burguesia” é um destes filmes considerados cultos, clássicos ou qualquer termo que ilustre sua importância histórica, mas, contrariando tudo o que pode, seu diretor, Luis Buñuel, entrega um longa-metragem bizarro e cheio de significados ocultos, que pode entregar muito conteúdo ou absolutamente nada, dependendo de quem está assistindo.
Não quero, de forma alguma, atestar algo sobre a inteligência do espectador. Inclusive, “O Discreto Charme da Burguesia” é um dos poucos filmes que acho completamente compreensível dar um 100 ou um 0, pois ele tem tanta capacidade para evocar o ódio quanto para o amor. Devo dizer que foi extremamente difícil decidir algo pontual, como uma nota, para um longa tão subjetivo, pois sua forma e estrutura são tão incomuns que uma opinião concreta nem parece apropriada. Não existe uma história, um enredo, uma narrativa ou qualquer coisa do tipo, Buñuel se empenha em reproduzir fielmente a estrutura de um sonho, pouco ligando para os mais de 70 anos de cinema que vieram antes. Mas até sonhos necessitam de algum tipo de conteúdo, um combustível para evitar que tudo seja apenas atividade neuronal incompreensível. O que liga todas as peças aqui é a burguesia, seus costumes, características e crenças; mais especificamente como um grupo de seis amigos encontra todo tipo de imprevisto quando tentam jantar juntos.
Luis Buñuel nasceu em Calanda, filho de uma família rica do interior da Espanha. Desde jovem ele tinha uma cabeça de revolucionário, um rapaz que sempre questionava autoridade e cometia atos que iam contra a norma vigente. Os ambientes em que vivia valorizavam o conservadorismo, a preservação da virtude e dos princípios que formaram a sociedade. Buñuel desprezava tudo isso. Após passar por vários cursos de graduação, ele chega ao Cinema com “Um Cão Andaluz”, curta-metragem que lhe deu entrada para o movimento surrealista de André Breton. Ele e seus companheiros compartilhavam o desdém por tudo que era aceito como normal, principalmente pela burguesia, classe notável na Paris da época, e tudo que ela representava. Todo esse ódio, essa forte energia, combinada pela fascinação de Buñuel por sonhos é a fórmula que dá vida a “O Discreto Charme da Burguesia”. Ele ignora até mesmo aspectos do cinema considerados tradicionais— como a forma — ao lotar seu filme com falta de sentido, desconexão e até aleatoriedade.
Contudo, uma coisa é certa: a única coisa que se tem são os fatos, as várias sequências que compõem esta obra. Para extrair algo palpável de toda essa montagem de situações não relacionadas, é necessário ter em mente que não existe nada que as conecte como um filme qualquer — uma aparecer depois da outra não significa que existe cronologia, por exemplo. Há apenas a dissecação da burguesia em todas elas. Por outro lado, se o trabalho com fatos for feito objetivamente, como se alguém tentasse entender este longa, nada fará sentido. Resta então, analisar como um mesmo tema é explorado em cenas diferentes. De todas as coisas de “O Discreto Charme da Burguesia”, glorificação do estilo de vida burguês não é uma delas, mesmo que todos os protagonistas façam parte da alta sociedade. Através da repetição de cenários e situações, Buñuel mostra como, independentemente da ordem em que são mostrados, os burgueses não são nada de mais. Seus desejos nunca desviam do medíocre. Toda vez que se encontram, o resultado é sempre um jantar na casa de alguém, como se essa fosse a única opção de lazer entre amigos. E lá, fazem a única coisa que sabem: mergulhar ainda mais em seus ideais distorcidos ao som de uma fofoca e degustando um martini.
Cada um desses jantares é uma metáfora para algo que a alta sociedade evita discutir: morte, sexo, religião, crime e guerra. Tudo isso mostra como Buñuel despreza essas pessoas conformistas, confortáveis em sua fortuna, que não ligam para o que acontece ao seu redor; pessoas que procuram não se envolver em assuntos políticos, deixando isso para os revolucionários de universidade, para os artistas radicais e para aqueles que gostam de derramar sangue por um ideal. Nada daquilo os toca até a hora que os assuntos chegam até eles, criando situações que nem todo o conhecimento do mundo sobre caviar poderia evitar. De uma forma inteligente, “O Discreto Charme da Burguesia” consegue criar humor com estas várias sequências, mostrando de forma animada a burrice da burguesia, satirizando-os sem escrachar, criticando suavemente sem ofender. A maior conquista aqui é como Luis Buñuel consegue entregar amarrar um conjunto de opiniões com uma corda invisível, seu sucesso em trabalhar um tema de um jeito muito pouco tradicional no processo — aspecto que “Eraserhead“, outra obra surrealista, falha. É tanta falta de conexão que toda interpretação fica a cargo do espectador, embora sempre haja um sinal apontando para a falta de amor pelas classes altas.
O que ainda permanece como um mistério nisso tudo é minha opinião, pois não sei dizer bem quanto este formato quebrado de contar uma história —ou não contar uma história — me agrada. Sei que não é genial, mas também que não é nenhum lixo. Pelo formato ser tão incomum digo que entendo tanto quem odeia, quanto quem ama “O Discreto Charme da Burguesia”. Pode vestir como uma luva ou nunca encontrar-se com seu espectador. A estrutura e o embasamento das críticas de Buñuel é visível, mostrando que o desprezo imediato da abordagem seria exagero. Ao mesmo tempo, não diria que o que vi aqui torna esta obra de alguma forma imperdível, apenas interessante. Faz mais sentido que deveria por conta da competência do diretor e menos do que poderia, já que os resultados não são absolutamente positivos.