Acredito que todo mundo já encontrou aquela obra que pode ser chamada de “bem feita”. A fotografia é um colírio para os olhos, o elenco é cheio de estrelas, os efeitos especiais são de cair o queixo e a temática da história é excelente. Entretanto, há um detalhe importante: o resultado é uma porcaria. Chega a ser entristecedor como os artistas escolhidos são desperdiçados e como fotografia e efeitos são como ouro que pinta uma tonelada de esterco. Infelizmente, existem muitas obras como essa, desastres bem produzidos. Felizmente, existe “Mad Men” como contra-exemplo. O aclamado seriado tem todas essas qualidades boas e honra todas elas sendo um dos melhores programas de televisão dos últimos e de todos os tempos.
O foco de “Mad Men” é a vida pessoal e profissional dos funcionários da Sterling Cooper: uma agência de publicidade de médio porte da Madison Avenue. Nessa época, acontecia uma subversão de preceitos publicitários aceitos antes. As agências paravam de obedecer completamente seus clientes e se davam mais liberdade na hora de criar suas campanhas. Donald Draper (Jon Hamm) é a figura central desta história, um executivo importante e uma das peças mais importantes no quebra-cabeça criativo da empresa. Mais do que uma mente brilhante, Don é um homem cheio de problemas. Sua infância é recheada de traumas, seu ambiente de trabalho está longe de ser tranquilo e seus demônios interiores fazem um festim com tudo isso. Resta a seus vícios aplacar as inseguranças trancafiadas debaixo de um terno escovado e um topete brilhante, embora ele saiba bem que bebida, cigarro e mulheres não são o bastante para resolver seus dilemas.
Beleza com substância.
Basta olhar para qualquer cena da série para que a elegância dela seja vislumbrada. Não me entendam mal, “Mad Men” é uma série de Drama, então não há muito espaço para efeitos especiais e criatividade aflorando descontroladamente como num blockbuster. Qualquer tipo de beleza é atingida por meios clássicos: figurino, cenários, fotografia, maquiagem e penteados. É curioso como algumas obras tentam ser inventivas ao máximo, criando roupas de design incomum e cenários cheios de detalhes, quando o segredo parece estar sempre nas mãos do bom terno e gravata. Realmente não há nada de novo nisso, mas há uma razão para tal traje ser um ícone de elegância há décadas. Tal como o clichê, se um terno, um penteado e um sapato brilhante forem bem usados, não há mal algum. Pelo contrário, em “Mad Men” chega a ser um diferencial na hora de mergulhar o espectador dentro de seu universo.
Quando o assunto é Hollywood e celebridades, automaticamente se pensa em glamour e moda. Artistas normalmente são considerados referência para roupas e cortes de cabelo. No entanto, o visual das estrelas deste universo se destaca por ir um pouco além do típico cabelo arrumadinho que se vê por aí. Os homens, em geral, usam o mesmo corte de cabelo: mais comprido na parte de cima do que nos lados, dividido e bem penteado. E por mais que isso seja o bastante para chamar a atenção, é ainda mais satisfatório ver que as mulheres roubam a cena com os penteados mais variados, todos sempre impecáveis. São detalhes aparentemente superficiais para serem destacados assim, pois realmente são frívolos em comparação com a parte realmente boa deste seriado. Porém vale a menção por terem sucesso no seu único objetivo: criar um charme irresistível, uma atmosfera visual genuína e quase afrodisíaca.
Indo além na parte visual, “Mad Men” ostenta um guarda roupa invejável. Dispenso comentários para os ternos, pois eles falam por si, mas vestidos, sapatos e roupas merecem todo e qualquer tipo de aplauso. Sou suspeito para falar, pois acho as roupas daquela década o ápice da elegância feminina. Ainda assim, não acho que seja exagero dizer que o elenco de beldades fica ainda mais sensacional vestindo roupas no limiar entre a sensualidade e a moderação. Colocar tudo isso na elegante realidade da Madison Avenue cria uma imagem ainda mais poderosa. Restaurantes caros, vinho, bebida, cigarro, escritórios sofisticados e várias figuras icônicas, de sua forma, andando por aí. Tudo parece pertencer, não há uma unha sem cortar ou um cabelo despenteado, é a autenticidade em forma de seriado. Nada que impedisse os críticos de plantão de caírem em cima de “Mad Men”, alegando que o conteúdo é romantizado ou plenamente falso. Destes, há desde aqueles que estudaram a linguagem da época até os que trabalharam com publicidade, ambos dizem que há uma porção de problemas, ao mesmo tempo que também há vários outros que elogiam a série por capturar o espírito da época muito bem. Conhecendo um pouco da história dos Anos 60, não apoio a idéia de que o seriado é construído a partir de estereótipos. Acredito que vários estejam ali e que existam fatos incorretos, mas há tanta abrangência que é exagero apontar o clichê como universal.
Os Anos 60 como mais que um período histórico.
Mais do que simplesmente não concordar com tais críticas, acredito que grande parte da genialidade do seriado vem justamente com as conexões com a época. O cuidado com detalhes visuais, mencionados anteriormente, até ajuda a criar um ambiente mais imersivo, enquanto a verdadeira autenticidade é traduzida nos temas do enredo. Há quem veja um homem sendo condescendente com sua mulher e ache certo, assim como há quem vê a mesma cena e fica horrorizado com o modo de pensar daquele tempo. Não é incomum um cliente pedir para ser atendido por um homem porque não confia os negócios da empresa a uma mulher ou uma esposa receber um esporro do marido por não ficar calada no jantar. Essa corrente de pensamento ainda vai além, mostrando como era a tal mentalidade coletiva da época. As pessoas eram diferentes entre si, mas vários conceitos pareciam estar impressos em suas mentes. Para o homem, o jantar devia estar na mesa no momento que ele chegasse em casa, traição era uma eventualidade do casamento e a esposa devia se portar como uma extensão de seu ego, alguém para satisfazer suas necessidades. São coisas assim entre uma diversidade de outras referências mais diretas que tornam o seriado tão especial. Quando a moda hoje em dia é matar os personagens para abalar o espectador, “Mad Men” dá um passo em direção a originalidade ao chocar com dilemas sociais.
Um período de transformações para personagens e enredo.
Se este seriado tivesse de escolher apenas um tema como principal, dentre tantos abordados, este sem dúvida seria “transformação”. Uso este termo pois ele implica mudança de um estado para outro sem juízo de valor, enquanto palavras como “progresso”, “evolução” e “desenvolvimento” indicam a passagem para um estado melhor ou superior. Aqui tudo muda. As pessoas mudam, os costumes mudam, a cultura muda, a Sterling Cooper muda e até o país muda. Todos os episódios apresentam mudança de alguma forma, a qual é ainda mais notável considerando que uma progressão linear não é exatamente bem definida. Muitos programas tratam uma temporada como um ano na cronologia de seu universo, ao passo que “Mad Men” não está muito preocupada com isso. Frequentemente um episódio mostra o passar de vários dias, às vezes encompassa apenas algumas horas. Pouco se importam em comunicar ao espectador quanto tempo se passa entre capítulos, chegando a pular meses entre um e outro. Por um lado, isso pode parecer negativo, pois a inconstância sugere confusão, mas, curiosamente, isto não acontece.
Em primeiro lugar, porque noções rígidas de passagem de tempo não são cruciais para entender o que se passa; em segundo lugar, porque mostram apenas o que interessa, só os dias de trabalho com algo importante. Isto evita todo o tédio que vem com qualquer rotina — repita alguma coisa muitas vezes e eventualmente ela se tornará chata — chegando a funcionar de um jeito bizarro. Um dia, por exemplo, fiz confusão no Netflix e acabei pulando um episódio, vi o oitavo antes do sétimo ou algo assim. Não perdi nada. Mesmo fora de ordem, tudo fez sentido. Tudo bem, foi um lance de sorte e coincidência; esta não foi a forma como idealizaram essa cronologia intermitente. Acredito que ela deva funcionar melhor para quem vê os capítulos semanalmente, da forma como foram lançados originalmente. Sendo assim, não acontece aquela confusão de detalhes perdidos e esquecidos entre uma semana e outra. Sem dúvida um planejamento inteligente. O mais importante, contudo, é como esse esquema filtra a casualidade relevante do resto, separando apenas o conteúdo que realmente importa. Eu não queria apenas saber o que acontecia, tinha certa obsessão pelas agendas dos personagens; queria saber qual era o grande plano da empresa, queria vestir um terno e tomar um drink. Este é o espírito de “Mad Men”, um que conquista seus espectadores e os prende até que a próxima excelente música toque nos créditos finais e de novo, até o seriado chegar ao fim.
Conflito e mudança em várias grandezas.
No mar de mudanças que rodeia o enredo deste Drama, nota-se também uma porção de eventos históricos importantes da história americana e mundial; coisas que até podem ser tratadas como clichês, mas que exibem mais do que o senso comum quando mostram a reação daqueles personagens específicos frente a tais acontecimentos. Mais interessante ainda é poder se situar na cronologia conforme os eventos culturais— quando “Tomorrow Never Knows” toca, fãs de “The Beatles” saberão que se trata de 1966. Ora os personagens estão aflitos pelas eleições de 1960, ora estão em luto pela morte de John F. Kennedy; ora estão embrulhadinhos em seus trajes diretos dos Anos 50, ora abraçam “paz e amor” como lema. Até aí, não há nenhuma surpresa, pois o seriado se passa em um período de transição onde o clássico e o alternativo brigavam por espaço. Entretanto, por mais que estes eventos tenham sua própria voz, subjetivamente falando, eles sozinhos não passariam de um documentário de História. Cabe ao elenco representar o impacto deles na cultura e na vida do cidadão comum. Novamente retomam a transformação como tema principal, que adquire outra camada quando a História sobrepõe dilemas pessoais. Cada personagem já tinha sua cota de problemas quando Martin Luther King Jr. liderou uma multidão de Selma: Don já tinha uma esposa, seus filhos e dezenas de clientes para se preocupar. Quando ele morre, é vísivel como tal evento traz uma nova gama de inseguranças ao elenco.
Os detalhes e dificuldades vão se empilhando e, assim, os personagens vão seguindo em frente, sem deixar faltar espaço para novos tópicos intrigantes — dentre eles o papel da mulher na sociedade e a transformação da publicidade. Don é uma pessoa completamente diferente de Pete Campbell (Vincent Kartheiser), que por sua vez não tem nada a ver com Peggy Olson (Elisabeth Moss). Todos trabalham juntos e até compartilham estilos de se vestir, mas Matthew Weiner, o criador da série, e sua equipe fazem questão de arquitetar um caminho especial para cada um. Sem exagero, todos os principais e até boa parte dos coadjuvantes possuem um desenvolvimento surpreendentemente completo. Nem todos estes menores chamam a atenção e, ainda assim, apresentam sua própria cota de ambições, qualidades e defeitos. Seu desenvolvimento nunca é imperceptível. Mesmo os coadjuvantes de pouca presença causam algum impacto, normalmente causado no elenco principal. Ao menos os personagens mais importantes passam por algum tipo de mudança grande ao longo das temporadas, nenhum fica parado no tempo exceto quando esta estagnação faz parte do arco. O foco nunca fica tempo demais em uma pessoa só e até o próprio Don não ocupa espaço desnecessariamente. Sua presença sempre traz algum tipo de avanço para a história. Novamente, a situação constantemente se transforma. Os personagens apenas acompanham o ritmo da empresa em que trabalham, da cultura que constroem e do país em que vivem.
Roteiro e elenco caminhando juntos em direção a perfeição.
Por último, mas não menos importante, está o elenco, a mão de obra que levaria “Mad Men” nas costas se fosse necessário. É através dos talentos dos excelentes atores que este seriado vai além de uma exposição temática de museu, além da ostentação de milhões gastos no magnífico plano de fundo para as igualmente magníficas histórias. Jon Hamm como o perturbado Donald Draper está perfeito. Chega a ser curioso como escolheram tão bem o ator quando seu trabalho no passado nunca foi muito chamativo. De qualquer forma, sua performance é natural e orgânica, transmitindo os conflitos internos do personagem com uma sutileza franca. Podem se perguntar se isso é possível, ao que respondo que com certeza é. Ser sutil é transmitir algo sem comunicar explicitamente, enquanto ser sutil francamente é transmitir algo subliminarmente usando características definitivas de personagem, como a arrogância ou o egoísmo. A mensagem permanece camuflada à análises rasas, mas qualquer aprofundamento mostra quão presente o conteúdo esteve. Outros membros do elenco, como Elisabeth Moss e Vincent Kartheiser, começam pequenos e vão ganhando a simpatia do espectador gradualmente. Quanto mais seus personagens são desenvolvidos pela história, mais espaço os atores ganham e mais eles brilham em seus papéis, que ao fim chegam a competir com o próprio Don em termos de relevância.
As engrenagens desta grande máquina estão sempre trabalhando em conjunto para construir algo maior. Os roteiristas dedicam-se muito na construção dos personagens, resultando nas personalidades icônicas apresentadas. Estas personalidades são desenvolvidas pelo enredo multifacetado, que trilha um caminho bem definido para cada um e ainda é envolve os contextos cultural e mundial nesse desenvolvimento. Conforme o jogo vira, os jogadores devem se ajustar. Tudo isso acontece ao mesmo tempo em “Mad Men”, em esferas pequenas e grandes, em personagens importantes e menores. O mesmo cuidado da parte visual está em todo o resto da produção. Isso torna a experiência única, torna “Mad Men” outro membro do panteão dos grandes seriados.
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