Além de ser conhecido como um dos grandes filmes Noir, “Touch of Evil” deve um tanto de sua notoriedade aos esforços de Orson Welles como diretor. A fotografia e os movimentos de câmera ambos constituem grandes conquistas, mas dentre todas as características da direção, a liberdade dada ao elenco foi a que me chamou a atenção depois que os créditos finais rolaram. De acordo com alguns atores, Welles deu muita liberdade a sua equipe, que reescreveu diversas falas e, consequentemente, mudou seus personagens. Talvez isso explique a má escrita de alguns, dado que nem todo ator têm perícia na escrita. Talvez não, mas é certamente uma possibilidade crível.
Feito praticamente no fim da vida do Noir clássico, em um tempo onde quase tudo já havia sido visto, é interessante como trazem uma história relativamente nova aqui. Não é como se os elementos dela fossem novidade, ainda nada que impedisse o enredo de surpreender com seu rumo inesperado. Em uma noite aparentemente tranquila, um carro explode quase imediatamente após cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Ninguém sabe direito o que aconteceu, mas dois oficiais da lei adquirem um interesse especial pelo caso: Miguel Vargas (Charlton Heston) do lado latino e Hank Quinlan (Orson Welles) do lado americano. Não demora para os dois policiais começarem a cruzar caminhos, levando a uma disputa que vai além da própria investigação.
A parte interessante desta premissa sem sal é justamente um dos grandes atrativos do roteiro. “Touch of Evil” não se limita apenas a uma investigação que provavelmente dá errado, existe toda uma segunda trama que acaba, por fim, roubando o palco da trama sobre a explosão. Para alguns, esta mudança de direção pode ser um defeito, uma vez que o segundo arco ganha mais destaque que aquele do começo. O espectador pode chegar a se sentir enganado, porém o que parece uma fraude não é nada mais que uma reviravolta bem bolada. Afinal de contas, o que é uma boa história sem uma sacada aqui e ali? Por um lado, esta mudança súbita demonstra certa segurança do diretor sobre seu material, não existe medo em levar a história para território desconhecido; em contrapartida, esta segurança leva a uma série de riscos assumidos que não dá frutos tão bons assim.
Na direção e no roteiro, pelo menos, esses frutos negativos não aparecem. Estou entre os que apreciaram e muito a virada que o roteiro eventualmente dá. Tudo começa com o clássico plano-sequência: a bomba sendo plantada no carro, o carro arrancando e passeando pela cidade até cruzar a fronteira e explodir. Curioso? Realmente, é muita coisa para uma tomada sem cortes, mas Orson Welles conseguiu. Não foi de graça que tal momento entrou para a história do cinema e é mencionado no primeiro sinal de um filme com plano-sequência. Até parece que buscam uma desculpa para citar “Touch of Evil”. Uma só sequência estabelece perfeitamente o tom do resto da obra: um suspense que começa com um atentado e não tem medo de explorar outros focos, assim como na sequência inicial a câmera passa do carro para os despreocupados pedestres que andam na rua. Welles acerta especialmente bem em direção e roteiro. A Universal bem que tentou estragar esta obra reeditando-a sem permissão do diretor, mas não serviu de muito. Hoje essa história pode ser aproveitada ao máximo através de uma restauração feita em 1998. Uma jornada que passa de uma explosão para um conflito de moralidade, o abuso de poder em prol de um bem maior e até onde essa lógica distorcida é válida.
Há casos em que reescrita ou improvisação fazem muito pela obra em que são vistos, a intuição e a experiência do ator atuam em conjunto com o script e ajudam a construir melhor um personagem. Bons exemplos estão aos montes por aí. Na década de 40, em “His Girl Friday“, Cary Grant modificou muitas de suas falas com o incentivo de Howard Hawks; e, em um exemplo mais contemporâneo, Robert Downey Jr. improvisou boa parte de seu papel em “Iron Man”, criando um personagem tão carismático que ajudou a alavancar o Universo Cinematográfico Marvel e até mudou a personalidade do Tony Stark dos quadrinhos. Este sucesso, porém, não se repete aqui. Não há certeza quanto a esta afirmação, mas coloco minha mão no fogo ao dizer que a reescrita feita pelo elenco é uma grande suspeita pela superficialidade de alguns personagens. Quem não acreditar pode notar que o personagem mais consistente é, de longe, o policial interpretado por Orson Welles; seja por sua atuação espetacular ou por ele basicamente evitar ser bidimensional como outros. Não é de se espantar, foi ele quem dirigiu e escreveu “Touch of Evil”. Seria esquisito se seu personagem não estivesse entre os mais consistentes e, sem dúvida, mais interessante se ele compartilhasse tal qualidade com o resto do elenco.
Tratando-se de pessoas diferentes, é compreensível que a visão de cada ator sobre o roteiro seja diferente. Em um filme, é frequente que as idéias de uma pessoa, ou um grupo delas, sejam transmitidas através de uma soma de ferramentes — a câmera, os atores e a história funcionam como canais de transmissão daquela série de ideais e conceitos. É louvável que o diretor tenha a iniciativa de fazer de “Touch of Evil” um trabalho de equipe ainda mais colaborativo do que acontece normalmente. Entretanto, o resultado final não é exatamente sintônico com o alto padrão estabelecido por Welles. Acredite ou não na minha suposição de que atores como Janet Leigh e Charlton Heston tenham interferido na construção de seus personagens, permanece o fato de que eles são falhos em muitos aspectos. O mexicano de Heston mantém a cabeça fechada para um desenvolvimento maior e sequer tenta simular um sotaque latino. Já a personagem de Leigh mal tenta esconder que é uma ignorante donzela em perigo, sem o mínimo bom senso no que se refere a sua própria segurança.
Além de escrever uma boa história e representá-la ainda melhor com sua interpretação, Welles leva a fotografia típica do gênero a novos padrões de qualidade quando uma estética fina, completa com sombras intensas e severas, é somada a movimentos de câmera vindos diretamente de um “Cidadão Kane”. Todo este aglomerado soma para uma experiência muito boa, ainda que alguns pontos se destaquem negativamente diante de outros mais positivos.