O Noir pode ser considerado várias coisas diferentes, dependendo de como cada pessoa decide aplicar o termo. Alguns definem como um gênero cinematográfico, outros como um estilo visual e há quem chame de um movimento específico dos Anos 40 e 50. Baseando-se nas histórias pulp de detetive famosas na época, o gênero passou a se expandir com o tempo, emprestando elementos de outros gêneros além do Suspense e do Policial. Este é o caso de “Mildred Pierce”, que vai além do típico mistério envolvendo uma femme fatale e um crime sem solução ao adotar traços característicos do melodrama em sua estrutura.
Mildred Pierce (Joan Crawford) é uma mãe da típica família americana suburbana: cuida da casa enquanto o marido trabalha e fica encarregada da educação dos filhos. Fazendo seu melhor para fornecer o que suas filhas e marido necessitam, ela é levada ao limite quando seu companheiro, insatisfeito com os esforços dela, revela ter um caso com outra mulher e abandona o lar. Tendo de providenciar tudo sozinha, Mildred passa a trabalhar arduamente para satisfazer as necessidades das filhas; especialmente as de Veda (Ann Blyth), que mostra ter um faro exclusivo para o caro e extravagante.
A princípio, esta sinopse dá a entender que o filme se trata especificamente de um melodrama, sem nenhum traço de Noir em sua composição para dizer o contrário. Alguns detalhes foram omitidos para não revelar muito sobre a trama, então, para não dizer que não há nada do gênero no enredo, digo que no meio desta trama existe um assassinato entrelaçado no drama de Mildred. Apesar de ser uma parte pequena do enredo, o mistério rodeando este crime é usado de maneira inteligente, dando uma profundidade à trama que provavelmente não existiria caso ela fosse contada de maneira cronológica. O resultado ainda assim estaria longe do ruim, porém o clímax seria um tanto previsível e bem menos impactante. Do jeito como o roteiro foi concebido, o resultado está bem perto do ideal. Um assassinato misterioso, e resolvido enquanto a história de Mildred Pierce é contada, dá um bom pontapé inicial na trama, ainda por cima trazendo uma desculpa formidável para um flashback.
Mas não é só com um assassinato que “Mildred Pierce” se encaixa nos moldes do Noir. Uma mulher do lar enfrentando dificuldades decorrentes da partida de seu marido pode parecer assunto de novela, quando no fundo está em completo acordo com a proposta do gênero. O Noir surgiu no início dos Anos 40 como um gênero de orçamento modesto, algo que abriu portas para a experimentação visual e temática. Os temas abordados envolviam os conflitos e descontentamentos de uma nação em guerra: no período de guerra, a família americana relutantemente cedia centenas de jovens para morrerem em outro continente; já no pós-guerra, o patriotismo de um país vitorioso batia de frente com o preço pago por essa vitória. O fatalismo característico do gênero, mais evidente em outras obras, era um meio simbólico de abordar a infelicidade de uma população inteira por meio de histórias de crime e imoralidade; ao passo que aqui as dificuldades inerentes desse período conturbado são abordadas literalmente. A dona de casa ganhou uma figura mais clara com quem se identificar, alguém que enfrenta problemas menos fantasiosos e mais próximos de sua própria realidade.
Além disso, as características do Noir também mostram suas cores, ironicamente, na parte visual de “Mildred Pierce”. O uso do preto e branco e de sombras fortes está presente de maneira tão característica como em qualquer obra do gênero, dando um show visual à parte da já excelente trama. Além de belas, são imagens inteligentes. O uso do contraste na fotografia e no figurino estabelece a divisão moral entre seus personagens, funcionando especialmente bem quando há um foco tão grande na relação conflituosa entre a protagonista e sua filha. Enquanto Mildred tem raízes em uma família de classe trabalhadora e mantém a determinação de seus pais ao sustentar suas filhas sozinha, sua filha, Veda, desenvolve uma mentalidade socialite ao tratar as conquistas de sua mãe como um mero intermédio para algo mais caro ou sofisticado. Esse conflito se agrava conforme a personagem de Joan Crawford passa a ter sucesso nos negócios e a filha amplifica sua cobiça por dinheiro e status acima até mesmo de valores morais.
Para se ter um embate realmente efetivo, figurino e estilização visual não são o bastante para dar conta do recado; por isso as grandes atuações de Joan Crawford e Ann Blyth estão ali, representando o complexo conflito entre mãe e filha. Mais do que simplesmente interpretar bem seus personagens, as duas atrizes — e até mesmo o elenco coadjuvante, no geral — fazem “Mildred Pierce” ter uma qualidade alheia à premissa melodramática. Longe disso, considerando grande parte do enredo, há uma história que está menos para os melodramas de televisão e mais para uma produção hollywoodiana de alto nível. Em um primeiro olhar esta parece uma adaptação de roteiro originalmente planejada para uma novela, porém basta ver os primeiros minutos de filme para ver que este não é o caso. Mesmo assim, o tratamento dado ao roteiro às vezes não é tão cuidadoso em algumas partes, o que pode leva o espectador a lembrar das produções de baixa qualidade da televisão. Este é o caso de alguns eventos que estão ali para simplesmente para causar choque alheio, os quais deveriam ter mais impacto por sua natureza grave, mas são abordados superficialmente e esquecidos rapidamente. O pior de tudo é que, tratando de um filme com um foco forte no drama, era de se esperar que tomariam mais cuidado no uso de mecânicas dramáticas; usando-as de maneira inteligente, como acontece aqui na maior parte do tempo, e não tão casualmente.
Um ótimo exemplo de como o Noir transcendeu a influência dos gêneros em que foi concebido, “Mildred Pierce” trabalha muito bem com as características do melodrama enquanto as integra com elementos do Noir. O resultado é um conflito familiar pintado emdiversos tons de preto, branco e cinza, os quais apenas melhoram pontos já excelentes do drama apresentado. Curiosos pelo Noir e sua atmosfera incrível estarão muito bem servidos, assim como qualquer pessoa que procure uma boa experiência cinematográfica não sairá insatisfeita.