Parte da mostra de filmes clássicos do 4º Festival de Cinema de Curitiba, esta obra de Jean Cocteau representa, junto de diversos outros trabalhos de Jacques Tati, a parcela francesa do evento. Bem avaliado pela crítica, este longa-metragem revisita o clássico conto de Orfeu, um lendário músico e poeta da mitologia grega. Apesar da recepção positiva e dos comentários favoráveis, posicionar esta obra no mesmo patamar de trabalhos grandiosos mostrou-se um tanto complicado; ainda mais quando se leva em conta a estrutura não tão sólida deste filme.
Considerando que este se trata de um filme de fantasia, com direito a sonhos e mundos alternativos, é difícil aplicar certo grau de palpabilidade em cima de algo surreal. O que se enxergou não foi tanto uma obra imperfeita por causa de uma tentativa de concretizar o inconcreto mostrado, mas sim um trabalho que, mesmo em seus moldes, falha consideravelmente em estabelecer parâmetros e limites para si própria. Filosoficamente falando, abordar o sobrenatural e o fantasioso não é algo a que limites são dados; porém em termos de estrutura de narrativa, há uma ou mais questões sobressalentes sobre como as peças se encaixam no contexto geral.
Orfeu (Jean Marais) é um poeta de renome e de sucesso, sendo amado pelo público ao mesmo tempo que é mal visto pelos poetas da velha guarda. Mas quando outro jovem poeta é atropelado e Orfeu é levado como suposta testemunha do ocorrido, eventos estranhos passam a acontecer. Mais adiante, Orfeu encontra a Morte (Maria Casares) em pessoa e se vê envolvido numa paixão doentia, que está mais próxima da obsessão. Aguardando por qualquer tipo de sinal de sua nova paixão, o artista passa a estruturar sua vida em cima deste romance. Ao mesmo tempo, as circunstâncias acerca do desaparecimento do poeta atropelado são questionadas, acumulando acusações para Orfeu como responsável.
Como mencionado anteriormente, este filme flerta com os limites do possível, sendo uma reinvenção interessante do clássico conto grego. Curiosamente, a história é retirada de seu ambiente mitológico para um cenário real, e recebe ao mesmo tempo salpicadas significativas de surrealidade em sua estrutura, criando uma nova maneira de interpretar uma história já conhecida. Enquanto na obra grega Orfeu apenas ia ao submundo para resgatar sua esposa, este longa-metragem aborda outros assuntos mais profundos, como a curiosidade a respeito do sobrenatural e até a obsessão do artista com a morte e a tragédia. Por usar uma simbologia bem disposta ao longo do enredo, muitos dos significados e temas acabam sendo representados de forma que mostrem presença sutilmente. No entanto, mesmo que as temáticas sejam perfeitamente ilustradas pela variedade semântica dos elementos da obra, estas acabam não fazendo muito pelo saldo final de qualidade.
O que acaba, por fim, quebrando um tanto da magia estabelecida pelos símbolos, é a maneira desleixada como alguns aspectos são tratados. Não que os eventos sejam desconexos ou livres de explicação, mas alguns destes mostram-se conflitantes com os próprios tabus estabelecidos pelo filme. Uma coisa é tentar racionalizar o abstrato, retirar sentido de algo que tem a subjetividade como natureza; outra é falhar em achar uma certa coesão, por falta de palavra melhor, dentro das regras do próprio universo criado pela obra. Mesmo jogando pelas regras estabelecidas pela trama, tentar compreender o porquê ou o como de como as coisas acontecem é de fato uma tarefa surreal. E por mais que um dos personagens fale que existe erro em se esforçar demais para entender as coisas, tenho de discordar. Ao assistir este longa-metragem de maneira tão despretensiosa quanto possível, com pouca empolgação prévia, posso dizer que minha motivação para encontrar detalhes além da percepção óbvia estava longe de ser encontrada. Levando isso em conta, com segurança digo que tentar compreender este trabalho com muito afinco não estava entre meus possíveis erros. Se houve algum problema de compreensão, talvez a culpa esteja no roteiro explicitamente conveniente apresentado ao espectador.
Apesar de algumas inconsistências graves, ainda pode-se dizer que a experiência proporcionada por este longa-metragem é positiva. Alguns pontos fortíssimos no início e no desenvolvimento apontam para um obra promissora, tal como o suspense associado aos temas fantasiosos. Por muito tempo o espectador é deixado no escuro, e a administração do clima tenso mostra-se mais que adequada. Infelizmente, uma conclusão insatisfatória acaba minando os notáveis conquistas prévias, finalmente prevenindo que esta seja uma obra melhor que é.