O filme mais premiado dos Oscars 2014 é, coincidentemente, parte do estilo de filme preferido da Academia ultimamente: biografias com algum tipo de relevância social. Não que isso seja ruim, mas nos últimos anos a tendência de Biografias serem nomeadas ao prêmio está notavelmente alta. Para se ter uma idéia, metade dos indicados em 2015 foram sobre figuras históricas; enquanto dois dos outros só não são biópicos por nome, porque a estrutura é curiosamente similar. Com 3 Oscars embolsados e uma recepção crítica positiva, devo dizer que esperava um pouco mais desta obra; que é competente, mas falha em chegar no nível esperado de um vencedor de Melhor Filme.
Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) é um jovem rapaz negro, que vive feliz com sua família no norte dos Estados Unidos pré-Guerra Civil. Morando na parte do país onde não há escravidão e negros são livres, Solomon ganha a vida como fazendeiro e músico. Quando uma interessante proposta de fazer um trabalho fora do estado surge, o músico aceita mesmo não conhecendo bem seus contratantes. Acordando acorrentado logo após passar mal em um jantar, Northup é transportado para o Sul escravagista e é anunciado como escravo para venda, sem nem poder tentar provar que era um homem livre no Norte.
Enquanto alguns filmes, que tratam sobre assuntos delicados, decidem abordar seus temas mais moderadamente, outros como esse não mostram muitos escrúpulos e partem para o que importa agressivamente. Isso não quer dizer, entretanto, que o drama e o sofrimento sejam descaradamente exagerados pra tentar amplificar o impacto dos eventos apresentados. O que acontece aqui não é tanto uma representação dos eventos de vida do protagonista, mas sim um estudo dos eventos que acontecem em sua volta. A imagem de Solomon Northup se tornou grande mais tarde, depois que escreveu seu livro e agiu como ativista social, mas o que brilha realmente aqui nesta trama é o que rodeia sua pessoa. No ambiente em que ele se encontra a História toma vida, mostrando desde as realidades claramente heterogêneas do Norte e do Sul dos Estados Unidos, até o início das intrigas que levariam ao começo da Guerra Civil Americana.
Seu sequestro e seu tratamento totalmente diferenciado após apenas uma viagem de carroça ilustram bem esse ponto, mostrando que a realidade ser tão diferente em lugares tão próximos só poderia ser resultar em conflito. Apesar de não ser tão claramente o foco aqui, a abordagem realizada em cima da moral é interessante de qualquer maneira. Tomando forma mais por atitudes que por seus personagens, que são poucos e nem sempre tão bem escritos, é notável analisar como a situação singular da época é apresentada. A volatilidade das relações entre brancos e negros é no mínimo digna de nota, pois até em casos extremos há uma vírgula, por mínima que seja, para levantar questionamentos. Existiam as relações de quase amigos entre mestre e escravo, mas que não levantam nenhuma conversa sobre uma possível liberdade; ao mesmo tempo que violentas relações de ódio explícito também se mostravam presentes, mas que curiosamente chegavam a envolver desejo sexual. Ver tais relações tão bem representadas é sem dúvida um dos grandes acertos desse longa-metragem, que cria um ambiente imersivo e comovente ao longo de seus 135 minutos.
Em termos de enredo, o filme por uma boa parte se mantém equilibrado e interessante; isto é, até um personagem representar um deus ex machina gigantesco. Não sou eu quem vai questionar eventos históricos ou o próprio livro escrito por Solomon Northup, que não li, mas independente do evento ter acontecido exatamente daquela forma, é difícil engolir a conveniência que acompanha os eventos. Dizer qual personagem é responsável pela mudança de maré pode revelar um pouco demais, mas até mesmo quem assistir enquanto faz outra tarefa notará quão conveniente as coisas acontecem à partir de certo ponto. Apesar de se sobressair como uma mancha de molho em uma camiseta branca, esta falha não afeta a parte realmente mágica deste longa-metragem. Toda a parte histórica e moral permanece ótima, aspectos que não funcionariam tão bem caso não fossem apoiados por um elenco competente. Menos não poderia ser pedido de atores como Michael Fassbender, que junto do protagonista Chiwetel Ejiofor entrega diversas cenas potentes, refletindo claramente os tons mais escuros da psique humana.
Em sua grande parte, “12 Years a Slave” se mantém como um filme completamente cheio de surpresas; ou seja, com um roteiro que consegue manter a imprevisibilidade no ar por um bom tempo. Infelizmente, o mesmo manuseio competente não se nota na conclusão; que cumpre seu papel, mas ainda deixa um gosto de que as coisas poderiam ter sido melhor realizadas. De qualquer forma, é um potente trabalho sobre a realidade americana na época em que a escravidão fazia parte do cotidiano, mesmo que apenas em alguns estados.