Cada vez mais Billy Wilder se mostra como um dos diretores mais eficientes e versáteis de todos os tempos. Cada obra sua, por mais que compartilhe gênero com outras, se exibe como uma surpresa. Filmes Noir como “Double Indemnity” e “Sunset Boulevard” ambos apresentam a atmosfera característica do gênero, mas diferem muito em como abordam as facetas mais obscuras do ser humano. “Ace in the Hole” escolhe representar a decadência humana não através de uma sociedade inteira decadente, mas sob a forma de um personagem espeficamente. Nunca deixando essa escolha limitar o escopo: este Noir é tanto um estudo da natureza humana como uma potente crítica social.
Billy Wilder atinge aqui, mais que qualquer outro filme seu, uma atmosfera tão intensa, que no final cheguei perto de sentir raiva de ser da mesma espécie que o protagonista. Tal é a força do argumento exposto pelo diretor, roteirista e produtor; Wilder em seu primeiro filme no comando das três funções. A acidez de outros filmes não poderia se fazer ausente, estando até mais pungente que em outras obras, ainda que “Ace in the Hole” não alcance a glória de outros trabalhos do cineasta. Um caso em que diálogos afiados não resumem os sucessos da obra, este longa encontra mais maneiras para cutucar as feridas da humanidade onde elas mais doem. A perfeição das atuações, em especial, potencializa os tais diálogos tensos com emoções concretas: ódio, amargura e, principalmente, ambição. Mais cedo que tarde o espectador acaba esquecendo de qualquer comparação com outros trabalhos do diretor. “Ace in the Hole” possui uma identidade muito bem definida em sua obra.
A história se localiza em um pequeno escritório de imprensa do Novo México, casa do jornal Albuquerque Sun-Bulletin. Depois de ser mandado embora de onze lugares diferentes, por motivos que vão de embriaguez até adultério, Chuck Tatum (Kirk Douglas) se encontra novamente no fundo do poço. Forçado a recomeçar do zero para ganhar sua credibilidade de volta, Tatum anseia por um grande furo que o tire de vez de Albuquerque direto para as grandes cidades, como Nova York e Chicago. Quando mandado para cobrir um evento banal, o jornalista tromba por acidente em uma história que pode ser a grande oportunidade que procurava. Um homem preso sob os escombros de uma montanha indígena torna-se o foco das ambições de Tatum, que está disposto a fazer de tudo para que aquele evento deslanche sua carreira novamente.
A luta de um homem por sua vida é utilizada como uma metáfora afiada sobre a visão de mundo obscura do Noir. Apesar da trama tratar de algo simples de entender, como o instinto de sobrevivência da vítima e um esperado altruísmo de quem pode ajudar, a realidade mostra-se bem diferente. Na verdade, um homem quer viver acima de tudo enquanto vermes e ratos, indiferentes à sua vontade, o esperam lá fora. Seria simples o bastante mostrar o que se espera, mas aí não haveria argumento algum. Essa distorção de cenário, por sua vez, tem muito a dizer sobre a ignorância e às vezes ingenuidade do ser humano. O espectador pode apenas lamentar que o prisioneiro não prefira se manter na companhia da poeira e dos pedregulhos de sua caverna.
Lá fora, “Ace in the Hole” não esconde a grande maquinação de seu protagonista. O espectador está bem ciente do que Chuck Tatum está fazendo com o homem soterrado, sabe que ele está disposto a ir longe para atingir seus desejos. Ele agarra em sua ambição com toda a força que tem, mesmo que isso signifique tratar a vida alheia como uma ferramenta para seu sucesso. A verdade é reservada ao protagonista e ao espectador enquanto as outras pessoas não entendem o que se passa, acham que é um grande evento heróico. Com esta ironia e seu toque de familiaridade, da ignorância da massa diante de grandes absurdos, este filme cava até as profundezas da mente humana com uma pontualidade e foco pouco rivalizados. Obras como “The Big Heat” mostram a corrupção humana num contexto muito mais abrangente: o departamento de polícia inteiro está contaminado, apenas o protagonista pode se gabar de ter a moralidade no lugar. Aqui é o exato oposto. Até dá pra dizer que é lamentável presenciar a falta de informação da população, mas não dá para criticá-los por sua ignorância. O veículo principal de toda e qualquer podridão é o protagonista, um ponto negro no meio de outros menos piores que ele.
Embora mal recebido pela crítica em seu lançamento, “Ace in the Hole” conquistou o merecido respeito com o tempo, sendo considerado um dos grandes filmes da carreira de Billy Wilder. Uma das críticas apontadas na época foi a preposteridade de alguns eventos, especialmente como um repórter falido consegue mexer tantos pauzinhos sem ter quase nenhuma moeda de troca. Tudo isso serve um propósito claro: usar a mídia como um representante da imoralidade. Embora este exagero deixe claro outra crítica social baseada na figura de Tatum — a maior delas, na verdade — este excesso vai longe demais ocasionalmente. Claro, um homem ambicioso e persuasivo pode ir longe, mas há um limite para quão longe alguém pode ir. Tais exageros me tiraram da história algumas vezes porque não havia como ignorar a persuasão incrível, sendo a escrita rasa dos personagens envolvidos com o protagonista mais culpados do que um defeito no próprio. A atuação sólida e certeira de Kirk Douglas tira de jogo qualquer possível crítica a seu personagem, mas também enaltece a superficialidade de outros. Enquanto, curiosamente, a escrita da personagem de Jan Sterling salva uma atuação mediana em sua essência. Pode-se engolir sua presença apenas por ser muito fácil pensar que sua personagem é tão ignorante, que nem se quisesse poderia abrir suas asas.
Tão fresca seis décadas depois quanto em seu lançamento, a crítica em cima do jornalismo permanece relevante e se faz notar pela força dos argumentos ácidos de Wilder. Era de se imaginar que a crítica não iria gostar muito da obra quando tantos críticos são jornalistas de profissão, mas eventualmente as qualidade de “Ace in the Hole” se sobressaíram. Outro grande filme de um dos melhores diretores da história, que trabalho após trabalho apenas reforça sua competência como cineasta.