“Deconstructing Harry” é um filme da década de 90 que é basicamente um remanejamento de outra obra de Woody Allen dos anos 80, que compartilha um enredo similar. Admirador assumido de diretores europeus, Allen bebeu de várias fontes diferentes para criar a estrutura deste filme. O que é visto na trama muito similar a trabalhos como “Wild Strawberries”, de Ingmar Bergman, e “8½“, de Federico Fellini; até outros elementos menores dão as caras, como a inspiração do nome do protagonista vir de “O Sétimo Selo” — Harry Block veio de Antonius Block.
Como outros filmes de Woody Allen, muitas das características do personagem interpretado por ele são parte da vida real do cineasta; fazendo desta e de várias outras obras uma autobiografia dele em pedaços. Neste caso, Allen interpreta Harry Block, um neurótico escritor de renome que passa por dificuldades criativas. Block está para receber um prêmio por sua escrita, mas para isso ele tem de viajar a um lugar de seu passado. Nos momentos que precedem sua aventura o escritor lembra das coisas que fez e das vidas que afetou, ao mesmo tempo que cenas de realidade e ficção passam a inundar e confundir sua mente.
Outro exemplo de um filme passeio — aqueles que têm uma trama mais rasa e focam em eventos do cotidiano da vida dos personagens — o longa de Woody Allen acaba se destacando de outros do mesmo gênero por sua abordagem um tanto Sopranista da vida do protagonista. Assim como Tony Soprano, o protagonista de “The Sopranos“, Harry Block possui uma série de problemas mentais; os quais são representados magnificamente pela atuação sólida de Allen e por elementos incomuns, que dão uma identidade bem única ao longa e à condição em si. Mais do que isso, as diversas cenas de ficção se manifestam de uma maneira relativamente única; não são momentos que fragmentam a narrativa, eles a complementam e dão significado a conteúdo puramente psíquico.
Também compartilhando essa semelhança com “The Sopranos“, “Deconstructing Harry” faz uso frequente de cenas imaginárias e de sonho. Normalmente tais momentos retratam personagens dos próprios livros do protagonista, colocando-os no mundo real em situações especialmente peculiares. O que torna as coisas interessantes, entretanto, é que os personagens da ficção não estão ali por estar, essas mesmas figuras são baseadas em pessoas da vida de Harry, que por sua vez têm um pouco de base na própria vida de Woody Allen. Sendo quase sempre o protagonista de suas histórias, Harry Block frequentemente encontra e conversa com esses tais personagens; e sendo eles representações de si mesmo, é criada uma rede de relações interpessoal e introspectiva ao mesmo tempo.
Não só isso, o que acabou sendo um toque especialmente genial foi a ideia de criar diálogos de Harry Block com as facetas de sua própria personalidade — além dos personagens que criou. Ao longo da trama todas as voltas que os livros de Harry dão acabam sendo basicamente uma auto-análise; ou uma busca introspectiva por conhecimento, tomando como fontes sua história e sua própria consciência. Em imagens vemos Harry se relacionar com o mundo externo, quando na verdade ele está o tempo todo viajando dentro da própria cabeça. Até tudo fazer um pouco de sentido, essas cenas parecem ser apenas interlúdios eventuais, mas a partir do momento em que o espectador passa a entender o que está realmente acontecendo a mágica acontece. Tal momento felizmente não é esfregado na cara de quem assiste e as oportunidades para entender tal sacada são várias, o que faz de tudo um tanto mais interessante.
Como esperado, retratar pessoas e eventos reais em uma ficção pode ofender os envolvidos e para complicar um pouco mais a situação, Harry é forçado a lidar não só com si mesmo mas também com o inferno dos outros. Ele tem o sofrimento de suas experiências e ainda é atormentado pela repercussão de sua própria arte, o meio que supostamente alivia seus problemas. Neurótico, hipocondríaco, infiel e totalmente desequilibrado, o personagem de Allen está mais para um vira-lata em Rivotril que um herói típico de cinema. Sua própria maneira de enxergar a vida e seus problemas joga ainda mais lenha na fogueira, o personagem se vê cada vez mais enrascado: as pessoas falham em compartilhar sua visão de mundo e o ele se recusa a mudar de postura.
Mas no fim das contas, mesmo com todos os aspectos incomuns e até levemente geniais, o filme acaba não sendo muito mais que esse conjunto de ideias excêntricas. Somando isso à lentidão de alguns segmentos a experiência acaba deixando um pouco a desejar, mas nada que mine a qualidade o bastante para tirar o mérito de bom filme de “Deconstructing Harry”.
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A impressão que tenho é que Allen é assim na vida real