Um dos filmes mais famosos de Federico Fellini, “La Dolce Vita” reafirma uma tendência temática do diretor: a mulher. O mesmo pode ser visto em outra obra sua, “8½“, que aborda a questão de uma maneira muito mais pessoal que aqui. Uma experiência interessante é assistir ao longa de 1963 antes desse e ver como o tema é melhor delineado, uma vez que a abordagem aqui é menos convencional e os significados podem se perder em meio a uma estrutura incomum e inúmeras metáforas.
As características do cinema francês da época mostram suas influências, mais especificamente na quebra dos padrões clássicos com a maneira como a história é exposta. Não há um esqueleto para tudo, os acontecimentos vão tomando lugar um após o outro sem clara ligação, que não for semântica, entre eles. O problema, se é que isto pode ser considerado um, é que Fellini não limita seu escopo a um número pequeno de assuntos, eles existem em número o bastante para poder causar confusão no espectador. Francamente, o método usado aqui, de certa forma, fere um pouco o filme em geral; não por fazer o espectador pensar sobre a obra após seu fim ou por tudo ter um ar não convencional, mas sim pelos eventos parecerem um pouco soltos nas horas entre o começo e o fim dfo filme.
A vida de Marcello Rubini (Marcello Mastroianni) é mostrada em uma série de episódios ao longo de uma semana, ilustrando seu conflito sobre sua posição no mundo, seja como jornalista de fofoca, degustador dos requintes da vida social da elite, ou como um parceiro para sua complicada namorada. Preso entre possibilidades de como viver uma vida prazerosa, o protagonista segue quase sem rumo, sendo guiado essencialmente pelo acaso proporcionado por sua indecisão.
Através desta semana na vida de Marcello o diretor trabalha, acima de todos os outros pontos, o papel representado pela mulher. A eterna volatilidade que a faz ir de figura divina a um flerte excêntrico é a raiz dos problemas do protagonista e possivelmente do próprio Fellini, insight interessante que pode ser melhor absorvido com a dica mencionada previamente. Em um lado existe uma mulher que o ama e o deseja, mas que mostra ser um inequívoco incômodo em sua vida; enquanto de outro há um mar de mulheres esperando para ser cortejadas por ele, oferta irresistível para um homem de paixões como este. Marcello não sabe realmente o que quer, dúvida esta que é o combustível que move o protagonista e outros personagens, não limitado ao fator mulher. À partir desta incerteza uma série de outras questões surgem, trazendo consigo uma riqueza semântica invejável. Em uma primeira vista muitos podem passar batidos e uma reflexão sobre a experiência cinematográfica faz muito por uma absorção do conteúdo apresentado, sendo crucial para que um olhar crítico adequado possa ser desenvolvido e também evitando possíveis julgamentos precoces.
É justamente nessa riqueza temática que a estrutura acaba sendo um tanto ineficaz em integrar todos os assuntos abordados, mesmo que não seja incoerente com o modo como o enredo é montado. Pelos sete dias de uma semana serem o mais próximo que se chega de uma estrutura formal — ou clássica, como o espectador preferir —, é compreensível que exista um certo senso de fluidez de um dia até o próximo. Este sentimento de que as coisas acontecem sem uma força mediadora simulando uma falsa espontaneidade é sentido e é uma mecânica interessante, visto que foi um dos traços mais marcantes do movimento francês nouvelle vague, mas que em combinação com a alta variedade de indagações acaba não sendo exatamente efetivo. Cada episódio ostenta um certo simbolismo crucial para o entendimento do porquê aquelas imagens estão sendo mostradas e são por si peças de conteúdo. Apresentados com um descompromisso característico de atividades rotineiras, tais eventos acabam se perdendo um pouco no mar de significados, sendo ligadas apenas pela presença do protagonista e seu eterno dilema, que nem ele sabe direito qual é. O elo entre estas diversas cenas ao longo de 174 minutos de filme pode até ser solidamente representado pela atuação forte de Marcello Mastroianni, mas não é forte o bastante para evitar que este sentimento de desconexão seja sentido.
É difícil criticar uma obra por uma característica que a mesma não mostra vergonha ou receio de possuir, ainda mais quando se vê claramente que o sentimento de desunião está em coesão com o modo cotidiano de apresentar os eventos da trama. Contudo, é um princípio válido considerar que a maneira como tudo é apresentado parece um pouco solta demais, com as pontes entre temas não sendo muito sólidas para criar uma fluidez que vá além de criar um ritmo agradável. Uma base mais formal não é necessariamente o caminho, mas talvez algo pudesse ser feito a respeito de uma ligação mais forte entre tais episódios.