A abertura da 13ª edição do Olhar de Cinema, Festival de Cinema de Curitiba, traz algo novo com essa co-produção entre Brasil, Itália e Líbano, dirigida pelo Brasileiro Marcelo Gomes, após abrir ano passado com um filme curitibano. Nos mesmos moldes de usar a Ópera de Arame como palco para a exibição e uma festa na sequência, o festival começa menos praguejado pelo frio embora ainda continue com problemas técnicos, principalmente o chiado no som que perdurou o filme todo. “Retrato de um Certo Oriente” se apresenta como adaptação de um livro quase homônimo do autor Milton Hatoum, “Relato de um Certo Oriente”, originalmente publicado em 1989. Imperfeito, competente e impossível de filmar, de acordo com o escritor, a obra se mostra um suspiro de frescor e um bom início de festival.
Com a guerra tendo deixado sua marca no Líbano, os irmãos Emir (Zakaria Kaakour) e Emilie (Wafa’a Celine Halawi) partem do país com sentimentos mistos. Enquanto o rapaz se mostra convicto de que é o melhor caminho a seguir, tendo vendido a casa da família para realizar a viagem, a garota já não demonstra tanta certeza de que é o melhor plano. No entanto, ela logo passa a reavaliar seus sentimentos quando conhece um mercador de tecidos chamado Omar (Charbel Kamel) e passa a se envolver com ele contra os desejos de seu irmão, que tenta interferir no relacionamento como pode.
Esse é um filme bonito e de conteúdo. São palavras leigas e simples que descrevem corretamente um sentimento generalizado que tive e, além disso, já é muito mais do que se pode dizer de várias obras exibidas no Olhar de Cinema. Ser mais interessante que a abertura do ano passado já é algo para comemorar. Melhor também. São obras agressivamente diferentes, claro, mas que numa escala subjetiva possuem uma diferença elementar porque “Retrato de um Certo Oriente” me toca de formas que o outro não poderia sonhar em fazer. Ele está longe de ser perfeito, o que não impede que as conquistas aqui demonstrem uma sensibilidade artística contida numa simples história de amor. Talvez não tão simples assim, mas que também não se perde nas possibilidades, como divagar no contexto sociopolítico ou em razões concretas para justificar conflitos.
A força da história está nas mãos dos três personagens principais. Dois irmãos e um interesse amoroso que vai contra os desejos do irmão, um que acontece numa viagem que a princípio ia contra os desejos da irmã. Há uma ironia inerente na situação, uma que só existe por manifestação do irmão em primeiro lugar. Ele é o agente do próprio incômodo, o criador da situação que o atormenta. E o que fazer quando o romance apenas floresce de forma natural? Nunca há um sentimento de que “Retrato de um Certo Oriente” está forçando sentimentos ou laços, a sensibilidade de saber como fertilizar o terreno e deixar que as coisas aconteçam é perceptível. Não como um processo espontâneo ou improvisatório, pois existem cenas de objetivo claro de flerte, de conflito, de aproximação, de consumação, entre outras. A magia é permitir que o elenco impecável realize as cenas e transpareça naturalidade, algo que se alcança quase sempre.
Infelizmente, “Retrato de um Certo Oriente” sofre uma queda assim que chega ao Brasil. Tudo que há antes disso, no Líbano e principalmente o trecho no barco, apresenta uma história significativamente mais engajante e com menos problemas. A história se passa em 1949 e leva o espectador por algumas partes relativamente essenciais da experiência brasileira ou, ao menos, é o que transparece para mim quando são estes os momentos escolhidos para representar o país na época. Há um pouco de tudo: do samba cantado e dançado, um momento para apreciar uma cachaça, a viagem pela Amazônia e até uma visita a uma aldeia indígena. Somando 93 minutos, o que não é uma duração muito longa, fica a impressão de que o punhado de momentos escolhidos cai no clichê da experiência essencial brasileira. E isso vindo de artistas brasileiros, o que é curioso.
Ademais, o estilo adotado aqui assemelha-se a produções européias — assumindo uma comparação genérica — com uma narrativa não muito causal e pouco preocupada com arcos dramáticos bem estabelecidos, de cenas longas e conclusões não muito conclusivas, talvez mais reflexivas. Quanto a isso, a coesão na manutenção desse estilo não falha e o filme consegue transparecer sinceridade na escolha ao invés de pretensão. Isso só quebra quando a escrita apresenta fraturas, as quais são bem evidentes porque “Retrato de um Certo Oriente” não tem muitos diálogos no geral, então monólogos expositivos ficam até mais em foco, momentos que gritam “Senta aqui e escute essa lição, meu amigo”.
“Retrato de um Certo Oriente” tem qualidades notáveis. É o tipo de filme que não deixa dúvida sobre ser bom ou ruim: ao final ficou bem claro pra mim, só faltava decidir quão bom ele era. Depois da longa ovação e de algumas cervejas na festa, as coisas se esclareceram mais e os problemas, ainda que nenhum muito grave, ficam mais aparentes. Parece que ainda falta algo. É como a fotografia da obra, ferramenta essencial na criação das várias belas imagens encontradas aqui. São planos visivelmente bem pensados e que entregam não só organização de elementos e diversidade na narrativa visual mas também uma estética de bom gosto. O pecado é ver que a maior ferramenta da fotografia em preto e branco, o contraste, raramente é bem aplicado. São imagens cinza, todas com uma paleta que fica entre tons acinzentados similares sem alcançar um preto opaco ou um branco absoluto. É bom, mas poderia ser melhor. O que resta é a curiosidade de saber como é o livro original, se o tal livro inadaptável supera o filme.