Faz um bom tempo que não vejo ninguém muito empolgado por novos trabalhos de Michael Mann. Acredito que o consenso seja de que “Heat” é o ponto mais alto de sua carreira e que, infelizmente, nenhum outro chegou perto de bater o mesmo nível de sucesso e de qualidade. Não posso nem dizer que o resto de sua filmografia seja ruim ou algo parecido porque não cheguei a conferir ela inteira. Mann certamente gozou de certo sucesso como produtor de seriados e filmes, o que deve contar de algo, mesmo que só para ele. A questão é que o Século 20, especificamente, foi meio infeliz para o diretor, que entregou um remake apenas decente de “Miami Vice” entre outras produções de pouca notoriedade. “Ferrari” até que atraiu a atenção depois que “Ford v Ferrari” se mostrou um grande sucesso, e de fato é bem melhor do que eu esperava.
Durante o verão de 1957, Enzo Ferrari (Adam Driver) passa por uma turbulência generalizada. Sua vida pessoal se resume a sair de um lar para dormir em outro e tentar não causar uma comoção muito grande por conta de sua atenção dividida. De um lado, sua esposa e parceira de negócios, Laura Ferrari (Penélope Cruz), sabe bem demais que tem algo errado dentro de casa para além do lendário mau humor de seu marido; de outro, ele possui uma segunda família e uma longa lista de promessas quebradas ao longos dos anos. De quebra, a Ferrari passa por maus momentos financeiros às vésperas da Mille Miglia, a clássica corrida conhecida pelos seus riscos e que pode custar o futuro da marca.
Uma parte engraçada e inconfundível em “Ferrari” é ver como Michael Mann continua conservando sua marca estilística de ser um diretor sério. Um cineasta sério que faz filmes sérios. De tom sério. Sobre assuntos sérios. E esse é um trabalho que se leva a sério, sem dúvida. Tudo é muito grave, urgente e imerso em certa formalidade como se fosse um assunto impassível de leveza porque o diretor raramente permite isso. Diferente de uma história em que a urgência e a gravidade são catalisadores do drama e da tensão, aqui também são parte de uma linguagem burocrática que é bem-sucedida em comover o espectador apesar de tratar algumas coisas de forma quase fria. Quase porque se fosse fria de fato, seria como uma burocracia monetária em que se paga o que se deve e não há mais o que ser dito. Aqui ainda há espaço para sentimento e até um pouco de humor, que funciona tão bem essencialmente por quão sóbrio o resto da obra é. As poucas piadas acabam tendo um impacto bem maior por mero contraste.
Lembro que uma reclamação comum sobre “Miami Vice”, por exemplo, era exatamente sobre como o filme era tão sério que chegava a ser sem graça. E sem graça mesmo, sem apelo e sem mover o espectador com alguma variação tonal. Já não acho o pior filme de todos, mas concordo que nele esse problema é muito mais notável que aqui. Pelo contrário, aqui até funciona porque a situação é mais equilibrada e o roteiro é mais adequado para o estilo do cineasta, tal como quando o lado mais sutil do humor provém do estereótipo do italiano mau humorado e estoico. É xingamento para cá e grosseria quando menos se espera. “Ferrari”, apesar de ser uma biografia, não está muito preocupada em pintar uma imagem esterilizada do famoso ex-corredor e inventor da marca. Ele é de poucas palavras e consegue ser objetivamente escroto. Seja ignorando alguém ou só fortalecendo sua figura como uma instituição, bem mais que um homem apenas.
E isso me leva a pensar em algumas críticas que vi falando sobre a falta de conexão que sentiam com o personagem. Os críticos não se sentiam mais próximos do personagem, não se sentiam parte de sua vida e de seus conflitos. Seria isso culpa da história ou da performance de Adam Driver? Bem, é um pouco culpa dos dois, ou melhor, responsabilidade, dos dois, embora nem de longe seja um problema. É o oposto, na verdade, o objetivo de “Ferrari” é ilustrar como tanto o homem se enxerga como um monumento como ele é de fato tratado como tal por muita gente. Talvez sua esposa o enxergue de fato como o homem falho que ele é, e só ela, enquanto o resto das pessoas o considera um semi-deus, ou alguém com quem não há diálogo ou discussão, apenas concessão de vitória. Baixe a cabeça ao homem ou sofra as consequências de seu descaso.
E se, por um lado, “Ferrari” não me desperta uma vontade de ser amigo pessoal de Enzo, ele mostra o que se propõe a mostrar, a imagem de um homem inacessível que vive várias vidas. E Adam Driver jamais poderia ser culpado de qualquer coisa exceto fazer um excelente trabalho. Seu personagem não é um cara muito legal, mesmo, ele é tudo que se espera de uma celebridade com ego grande e um senso de auto-importância maior ainda. Não é pra ser uma pessoa afável nem é alguém que queira que as pessoas se relacionem com ele, é mais um boomer baby italiano sem espaço para sentimentos na sua agenda cheia. Ele é, mesmo assim, alguém com é possível ter algum tipo de vínculo, ainda que seja num nível de compreensão superficial de como a pessoa funciona, até porque o recorte temporal aqui é de apenas um ano.
Um ano importante, claro, mas um ano só. É o ano em que a vida pessoal de Enzo sofre um grave golpe, em que a empresa passa por uma turbulência perigosa e quando tem um evento importante para corredores, montadoras, executivos e até para o público. É um exemplo perfeito de roteiro com base em material histórico: escolher um período em que coisas acontecem e que seja ilustrativo de um contexto maior do que o ilustrado. Talvez não seja completo como uma biografia literária, já como experiência cinematográfica é um filme bem completo. Não é para ser só sobre Enzo e toda sua história ou da marca, além disso é para viver o sonho sobre rodas que é uma Ferrari rasgando as estradas numa corrida. E em questões de direção, Michael Mann se mostra impecável em retratar uma corrida do jeito certo.