Eis um filme curitibano para abrir o Olhar de Cinema, festival de cinema de Curitiba! Convidado para abrir o evento em uma sessão especial e inédita na Ópera de Arame, marco turístico local que até então nunca havia acomodado uma exibição de cinema, “Casa Izabel” lotou a sessão com uma audiência entusiasmada com a ocasião e eventualmente com a própria obra, que recebeu um leva de aplauso ao final da sessão. Participando também estavam diretor, roteirista, produtora e atriz, além de parte do elenco, muitos dos quais participaram da festa de abertura depois da sessão, o que me permitiu a rara oportunidade de conversar brevemente sobre a obra.
A história é ambientada em 1970 e em plena ditadura militar, começando no meio do nada em um casarão antigo no meio da floresta. Um engravatado cidadão aparentemente comum chega de ônibus e desembarca numa estrada de chão perto do lugar, onde um grupo de pessoas se reúne em uma forma de retiro. O detalhe é que todos os homens lá se vestem como mulheres, adotam novos nomes e novas personalidades, e assim passam seu tempo se divertindo entre cigarros, bebida e outros passatempos. No entanto, algo mais acontece ali, algo envolvendo intenções ocultas e interesses velados em meio à atmosfera lúdica do lugar.
Como experiência, essa abertura de festival foi uma das melhores das que participei. Nunca havia ido nas festas da organização e o porquê eu não sei, nem havia ido numa sessão dentro da Ópera de Arame, o que também foi bem interessante apesar do frio absurdo. Minha volta ao Olhar de Cinema não poderia ter sido melhor. Já o meu tempo com o filme foi diferente. “Casa Izabel” certamente tem seu apelo por conta de ser uma produção local rodeada por gente conhecida e querida, praticamente um jogo em casa, e isso ficou bem perceptível nos discursos e na recepção. Por outro lado, não posso dizer que gostei tanto da obra quanto da ocasião acerca dela, problemas de roteiro, de direção e muito provavelmente de concepção atrapalham o que no início parece ser algo promissor.
Não que esse seja um caso de filme que começa genial e termina decepcionando muito. “Casa Izabel” dá alguns indícios já no início de que talvez seja uma estrada com alguns buracos aqui e ali. Já no começo há uma falta de sutileza no tratamento dos mistérios da casa no meio do nada, fica claro que os personagens estão escondendo alguma coisa e não de um jeito bom, exatamente. É como alguém que esconde um segredo e depois conta para um amigo que está escondendo algo. Se a idéia fosse manter a omissão e evitar qualquer tipo de risco, seria melhor não anunciar ao mundo o que você está fazendo. É claro, “Casa Izabel” não fala tão literalmente sobre seus mistérios, embora existe uma cena em que um personagem fala que “esse assunto é proibido”, mas também não consegue trabalhar com sutileza para mantê-los no ar.
A princípio, isso indica um problema de roteiro ou que vem do texto original, o que nesse caso seria de adaptação. Se não falta sutileza, falta polimento. Num exemplo besta, um dos primeiros diálogos coloca a governanta repreendendo um recém-chegado hóspede por ele estar fazendo check-in após o horário limite. E é só isso. Ela deixa ele se hospedar logo em seguida sem consequência nem indicativo do motivo para existir uma regra tão arbitrária num lugar tão inortodoxo. Caso fosse para indicar um traço de personalidade da personagem, a corrente morre no mesmo lugar, de qualquer forma, e não há desenvolvimento dessa característica ou da própria personagem que indique por que é relevante ela agir de forma pragmática e mandona daquele jeito. Mas esse é um exemplo pequeno ainda. Mais tarde ela se mostra parte de um arco narrativo de grande relevância, tendo a ver com um dos vários mistérios que “Casa Izabel” tenta mostrar que tem e talvez sendo o maior deles, além do mais decepcionante por ser desenvolvido de forma errática e intermitente, finalmente concluindo de um jeito insatisfatório por não concluir muita coisa de fato e parecer que acabaram as idéias, então simplesmente encerram ali mesmo.
Algo mais que deixa as coisas estranhas é o fato de ser um filme de época. Ambientado em 1970, é evidente que haveria uma diferença na forma como as pessoas falavam: as gírias, a entonação e principalmente o vocabulário. E só posso criticar parte do elenco nesse ponto, mesmo, pois de resto eles são o ponto alto de “Casa Izabel”. Apenas dois personagens soam errados, de certa forma, em sua tentativa de se imergir no vocabulário da década de 70 e ainda assim passar uma sensação de naturalidade. Nesses casos, parece que eles estão tentando forçar um ar de seriedade ou tentando emular um jeito de falar que não é deles, embora insistam em falar daquele jeito pronunciando todas as sílabas sem abreviação. Felizmente, a grande maioria do elenco não peca nesse aspecto e ainda entrega uma parte interessante e inesperada em suas performances.
Na minha conversa com o diretor, Gil Baroni, pude perguntar se houve algum tipo de conceito por trás da escolha de atores, se houve algum tipo de ponderação entre escolher atores que também são drag queens contemporâneas, por assim dizer, e atores que não são drags. No primeiro caso, a obra teria um elenco que poderia ser mais performático e extravagante, mais dedicado e fiel às personas criadas para interpretar dentro da casa. Seria uma opção estilística interessante, mas a surpresa veio na forma de um elenco que não faz tanta questão de manter suas novas identidades o tempo todo, eles saem de personagem frequentemente e por vezes agem normalmente, só que vestidos de mulher. Muitos dos seus comportamentos também não denotam uma finesse na arte de interpretar uma persona feminina, mas isso não é um problema: é até mais intrigante porque indica como a visão de um homem dos Anos 70 sobre uma mulher era limitada. Eles agem assim porque não fazem idéia de como é uma mulher de fato, estão limitados por achismos que, ironicamente, enriquecem o contexto histórico da obra.
Infelizmente, o diretor disse que não foi uma escolha deliberada dele e que o elenco já estava todo predefinido antes de sua entrada no projeto. De qualquer forma, funciona e muito bem. Também pude conversar com dois rapazes responsáveis pela parte de trilha sonora e comentar que achei que ela, apesar de muito competente, era presente demais e podia dar um respiro vez ou outra para abrir espaço para uma aliviada de estímulos sonoros e para deixar a atmosfera se criar naturalmente, sem necessariamente uma companhia musical para indicar toda e qualquer nova guinada tonal. Foi uma conversa interessante e os dois foram muito receptivos às críticas, além de simpáticos e abertos à conversa.
“Casa Izabel” tem seus pontos altos e qualidades notáveis. O elenco, em especial a personagem Izabel interpretada por Luís Melo, brilha em seus breves momentos de cena, e como ele consegue contribuir para o ar de decadência que impregna o lugar. É perceptível que trata-se de uma história com potencial. Infelizmente, este se perde num enredo mal desenvolvido e concluído de forma apressada e desleixada. Uma pena, pois o conceito era interessante de verdade.