Doze indicações ao Oscar é algo que a maioria das pessoas presta atenção. Se muitos permaneceram apáticos depois de verem a divulgação de “The Power of the Dog” pelo Netflix em sua estréia, isso sem dúvida mudou um pouco quando saíram as indicações da Academia. Tal feito é incomum e chama até aqueles que não ligam muito para cinema para dar uma chance. Não muito surpreendentemente, imagino a quantidade de pessoas que se empolgou com o fato e não muito ao encontrar um filme vagaroso, sem ação e de estrutura no estilo artístico frequentemente rejeitado pelas massas. Quem procurava algum tipo de ataque de cães, um ataque ou mesmo cães, deve ter ficado sem entender.
Tal é a natureza enigmática desse filme dirigido e adaptado por Jane Campion a partir de um livro homônimo por Thomas Savage. Sua história acompanha um bando de caubóis na América dos Anos 20, dois irmãos rancheiros bem-sucedidos chamados Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemmons). Certo dia, seu caminho cruza com o de uma dona de estalagem e seu filho: George se encanta pela moça, Rose (Kirsten Dunst), mas seu irmão a trata com asco e descaso, assim como o faz com seu filho, desrespeitando-o por achá-lo aquém de seus padrões. Conforme os dois grupos se aproximam, atritos nascem e se intensificam, frutos de filosofias muito díspares.
Embora eu não goste de classificar filmes levianamente como “filmes arte” e “comerciais”, algo binário e simplista demais para acomodar a diversidade de estilos, se fosse encaixar “The Power of the Dog” em uma categoria, seria a primeira. Classificada como Faroeste, detalhe fortalecido pela presença de cavalos, caubóis e planícies quase desertas, a obra ainda poderia ser colocada na segunda categoria como outros grandes nomes do gênero, que já foi consideravelmente mais popular em décadas passadas e também catalisador de bilheterias imensas. O que a diferencia é sua abordagem revisionista, em primeiro e mais importante lugar, e a completa falta de alguns elementos clássicos, assim como o ritmo adotado e os temas trabalhados pelo enredo. Na verdade, está mais para um Drama ambientado no Oeste, e não há nenhum problema com isso.
Para não dizer que minha impressão foi estritamente negativa, o que não foi de fato, há alguns méritos inegáveis em “The Power of the Dog”. Eis um filme profundo, ou que ousa ser profundo e leva a sério alguns detalhes relativamente secundários na construção de seu argumento. A idéia básica é apresentar um grupo de pessoas unido pela escolha de alguns membros, algo que os outros não apreciam, tal como a união de um casal em que os amigos dos dois lados não se gostam. Atritos estão garantidos, claro. Eis um grupo de caubóis entusiastas pelo próprio estilo de vida, fãs do suor e da poeira, da sujeira e do cheiro de esterco adentrando as narinas logo cedo. E então chega uma mulher que não faz questão de nada disso e mora no tal velho oeste porque sim, não por amar suas qualidades; junto dela, seu filho que se mostra uma antítese ainda maior, um rapaz de sensibilidade, de fraqueza física e atributos mais centrados no mental.
Ainda hoje existem conflitos dessa natureza, em 1925, então, é de se imaginar quão mais intensificado deveria ser a discrepância entre aquilo que era considerado um homem de verdade e outro chamado de frouxo. Considerando que uma das partes injuriadas é a mãe, sua lamúria de ver o filho castigado e oprimido era para ser um elemento narrativo forte. Somando tudo isso a uma ambientação fortíssima e atmosférica como deveria ser, produto de um design de produção de primeira linha, “The Power of the Dog” deveria ser uma experiência e tanto. Não só isso, ter performances sublimes e acima de críticas, só deveria consolidar o sucesso da história como um experimento revisionista do velho Velho Oeste, algo que busca ir muito além das obviedades e convenções de gênero daquilo que veio a ser conhecido como filme de bangue-bangue.
Esse é o poder de uma narrativa. E também porque acabo focando frequentemente no roteiro acima de outros elementos do cinema. Usar os ingredientes certos e trocar a ordem dos passos numa receita é pedir para as coisas darem errado. Jane Campion tenta contar uma história sobre a desconstrução da figura do macho rancheiro, do homem de maior calibre e de virilidade ressonante. Isso é apenas uma parte, claro, mas seria uma das principais. Os desdobramentos envolvem a relação dessa figura ultra-masculinizada com uma de natureza diferente e como a reação hostil fala mais sobre o agressor do que sobre a vítima. Em um nível mais superficial, o desabamento emocional da personagem de Kirsten Dunst tem a ver com a pressão, com o abuso e a opressão do macho alfa contra ela. Em suma, é uma história sobre pessoas com problema uns com os outros, cuja continuidade leva a algumas sugestões não muito sutis nem muito impressionantes sobre a essência secreta de alguns personagens. Há conteúdo e idéias em “The Power of the Dog”, o que faltou é uma boa administração delas para que a experiência fosse menos enfadonha, demorada e desequilibrada como foi.
A trama se demora muito em algumas etapas da história e parece que não intensifica o suficiente outros que precisariam de maior destaque. Por exemplo, parte do arco de certa personagem envolve seu colapso mental por conta do abuso psicológico que sofria. Ainda que talvez não fosse a intenção colocá-la como uma parte direta do conflito, como se alguém brigasse com ela, por exemplo. É o estresse da convivência que a derruba, como viver com uma pessoa tóxica. E como isso transparece visualmente? Senti que houve uma falta nessa parte, o vilão não é canalha a ponto de contaminar o ambiente ou não tão diretamente abusivo. Além disso, personagens somem por longos períodos de tempo de forma estranha, ficando ausentes por um bom tempo e retornando apenas a tempo para uma conclusão leviana. “The Power of the Dog” até pode ter suas várias qualidades, mas não deixa de ser uma experiência de andamento lento e por vezes tediosa.