Já existem o que, uma dúzia de filmes do Batman? Aqui está mais um se não for o bastante. Um hiato veio depois do fiasco de “Batman & Robin” e a imagem do personagem ficou um tanto manchada quando o herói passou a ser associado à galhofa e idiossincrasias fantasiosas que tiravam toda a credibilidade do herói. Então se passaram longos oito anos até Christopher Nolan decidir tomar um caminho discordante do anterior e transformar o herói em algo mais parecido com sua contraparte nos quadrinhos, soturno e sério. Foi até mais longe e trouxe realismo a algumas facetas do personagem sem muita explicação nas páginas. Desde então, o personagem trocou de ator novamente, brigou com Superman, participou da Liga da Justiça e esteve em mais de algumas animações. Aqui começa — mais um — ciclo com mais um novo ator e rostos mais ou menos conhecidos de outras ocasiões. “The Batman” pode até ser um filme a mais do que o personagem precisava, mas ainda é bom.
Há pouco tempo usando o manto do Cavaleiro das Trevas, um jovem Bruce Wayne (Robert Pattinson) ainda encontra seu caminho em dividir suas identidades e aprender a lidar com a lei quando se opera fora dela. Seu único aliado confiável na força é o policial James Gordon (Jeffrey Wright), uma peça que se mostra essencial para entender assassinatos novos e bizarros que surgem pela cidade, alvos políticos do alto escalão de Gothan City são mortos e presos a charadas destinadas ao Batman. A cada novo cadáver, uma nova informação sobre o assassino chamado Charada (Paul Dano) e a verdade que ele quer revelar.
O que “The Batman” introduz que outros ainda não havia feito? Começa a ficar difícil quando se está quase em 10 filmes, algumas dúzias de animações e mais de 80 anos de histórias em quadrinhos. O personagem já passou por muito, do ridículo ao realista, e está se aproximando de não ter muito mais o que abordar. Ao menos essa é a impressão que se forma pouco a pouco conforme o mercado não demonstra querer abandonar sua galinha dos ovos de ouro. Felizmente, ainda há bastante material para ser adaptado e mais sendo criado todos os dias. Com isso, havia uma demanda recorrente por parte dos fãs mais fiéis que já tinham visto o Batman super-herói invencível, o caricato e até o assassino. Faltava aquilo que até hoje é o apelido carinhoso dado por Ra’s al Ghul.
Faltava o Batman Detetive. Onde estavam as investigações? E os assassinos que não deixavam tudo imediatamente claro desde o começo e queriam humilhar, constranger ou apenas destruir o homem-morcego? Quando Matt Reeves anunciou que sua versão do herói seria mais inclinada à investigação, ele não mentiu. O enredo é focado em Batman trabalhando junto com a polícia — e às vezes contra ela — para descobrir por que gente poderosa estava aparecendo morta pela cidade. E não só isso, as vítimas vinham com bilhetes, mutilações, fita adesiva e estruturas estranhas. É um pouco do clássico assassino em série cheio de extravagâncias. Vai além de uma morte com motivação e objetivo simples, cabe aos investigadores tentarem compreender o que cada coisa significa no grande esquema das coisas. Ao menos “The Batman” foge do óbvio e não inclui nada de tentar usar empatia para entrar na cabeça do assassino para pensar como ele e capturá-lo e algo do tipo. Ainda é uma história do Batman, no fim das contas.
E nisso “The Batman” não decepciona. Há um pouco de tudo para todos os públicos e para não ficar óbvio aos fãs que conhecem um pouco mais de suas obras. Por exemplo, mistura-se um pouco do lado detetive com ação de um herói ainda em início de carreira, sem tanta dependência em tecnologia e facilidades que ele adquire mais adiante. A ação no meio do mistério diversifica e também desenvolve a idéia de trazer mais uma abordagem do homem-morcego, seja em ação, em suas relações ou em seu modus operandi. Há uma inspiração em Ano Um sem ser uma história de origem; um pedaço pequeno da jogo da Telltale sem ir muito longe na dupla identidade; outra parcela de Terra Um com origens diferenciadas para elementos conhecidos. “The Batman”, em suas quase três horas, não parece ser tão longo e ainda se mostra muito equilibrado no desenvolvimento de seus vários elementos. O enredo, complicado, multi-ramificado e cheio de personagens, consegue se manter interessante e amarrar tudo sem cometer o erro clássico de múltiplos vilões, por exemplo. Uma ambientação engajante e também diferente, mas reconhecível, traz uma Gotham City com um toque de Nova York sem perder o ar sujo inerente de Gotham, só não tão pesado como em “Joker“. Absorver o cenário enquanto Michael Giacchino soa sua provável melhor trilha sonora é só um prazer secundário aqui.
É bem provável que essa fase já tenha passado e as pessoas nem pensem mais nisso, mas parece que ainda é uma questão relevante para alguns: como está Robert Pattinson no papel? Ou melhor, é mais fácil dizer que o desdém pelo ator passou e ninguém mais revira os olhos na menção de seu nome. Nos últimos anos, ele teve mais de alguns papéis em que conseguiu provar ser melhor que sua sombra de vampiro brilhante averso a sexo com humanos. Pode-se dizer que nenhuma heresia é cometida aqui ao mesmo tempo que não é um ponto alto de “The Batman”. O entusiasmo de Matt Reeves por Pattinson, refletido em sua idéia de escrever o papel especialmente para o ator, e de Pattinson pelo Batman, não é a coisa mais fácil de ser identificada na obra como um todo; não na performance apática do ator ou na escrita de Reeves, que não traz nada de especial para a personalidade de Bruce Wayne. Em termos de dualidade de identidade, o conflito é deixado de lado para priorizar Batman acima de tudo. Nesta versão, Bruce defintivamente é o alter-ego secundário do Batman ao invés do oposto ou de algo mais equilibrado. E mesmo nessas poucas cenas com Bruce, não há quase nada para ser visto na interpretação colérica de jovem introspectivo e talvez depressivo, com certeza de poucas palavras.
Não é como se fosse algum erro grave ou algo do tipo, só não é chamativo. Quem assistiu ao trailer já teve uma confiável amostra do que esperar: jovem gótico com tendências obscuras e que, a propósito, também é o Batman. Só não pôde ser magrelo porque seria inviável com a idéia de esmurrar criminosos armados, mas tudo bem, o que se manifesta é o espírito do jovem revoltado. Por outro lado, Paul Dano como o Charada pesa mais negativamente por começar de um partido mais questionável com a nova concepção de Matt Reeves para o personagem, indo para tão longe da palhaçada de Jim Carrey que passa também do ponto que seria um bom meio termo entre insanidade, inteligência e extravagância, enfim caindo na armadilha da abordagem obscura demais: não basta ser um criminoso diferenciado, tem de haver uma doença mental severa, um visual agressivo e tendência de ser assassino em série. Dano trabalha com o que tem, não dependia dele trazer um Charada como o da série Arkham de jogos, porém não é como se ele precisasse ir além do limite em algumas cenas e se empolgar com a idéia de pessoa insana que se acha revolucionária, tal como um Coringa de 2019 autoconsciente.
Há ainda dois outros vilões a serem encontrados aqui: um absolutamente clássico e outro um pouco menos popular. O primeiro vem direto da galeria de vilões essenciais do Batman, um dos primeiros que vêm à mente quando se fala no assunto, o outro vem direto da época em que o personagem lidava com mafiosos em vez de lunáticos. O Pingüim de Colin Farrell e Carmine Falcone de John Turturro. Ambos se saem muito melhor do que aquele chamado de principal, seja em performance, caracterização ou fidelidade ao conceito original. Turturro, em especial, traz à luz um lado do mafioso que foge do terno risca de giz, charuto robusto e Tommy Gun. Seus papéis são menores do que o do Charada e, ainda assim, conseguem ser mais impactantes. No fim, é só isso que falta em “The Batman” mesmo para ser um filme sem nenhum problema notável. Com tantos vilões pré-fabricados, era de se esperar que não fossem errar nisso.
2 comments
Caio Bogoni, você foi perfeito na abordagem do filme ‘The Batman”.
Parabéns, tens uma mente brilhante!
Muito obrigado pelo feedback, Amur! Abração