Ah, “Uncharted”. Que ironia ver a Sony fazendo um filme sobre um jogo seu, ainda mais quando é frequentemente acusada por fazer jogos que tentam ser cinematográficos até demais – jogos filminho, no popular. Aqui está uma cutscene de quase 2 horas com sequer um minuto de gameplay. Mas brincadeiras à parte, esse é a primeira produção da Playstation Pictures, criada especialmente para gerir as adaptações de jogos para o cinema. Com um trabalho visivelmente mais dedicado na criação de um produto de qualidade, será esse um acerto na grande lista de bombas dos filmes sobre jogos? Não dessa vez. Continuando a onda de adaptações decentes que vem desde “Tomb Raider“, continuando com “Detective Pikachu” e “Sonic the Hedgehog“.
Nathan Drake (Tom Holland) vive junto com seu irmão em um orfanato, vivendo pela adrenalina de realizar pequenos delitos e descobrir mais sobre o mundo e suas riquezas, assim como seu suposto ancestral, o famoso explorador Sir Francis Drake. Ao chegar na vida adulta, Nate recebe a visita surpresa de um cliente com segundas intenções: Victor Sullivan (Mark Wahlberg) quer sua ajuda para descobrir o ouro perdido há 500 anos das expedições de Fernão de Magalhães. Sedento por aventura, Nate embarca numa corrida pelo ouro, sem saber que um magnata espanhol está empregando recursos para conquistar o que acha que é seu.
Talvez quem não conheça muito de jogos enxergue uma semelhança com “Tomb Raider“, de 2018: ambos envolvem uma pessoa saindo de sua vida normal em sociedade para entrar em uma busca por tesouro e acabar numa ilha tropical com com gente armada e perigosa. Justo. Até porque os jogos da série “Uncharted” se inspiraram nos de “Tomb Raider” e depois serviram de inspiração para o reboot dessa última em 2013. E ambos foram influenciados por “Indiana Jones”, então não há muito para onde correr no fim das contas. As audiências mais jovens, talvez por serem mais expostas a jogos do que cinema de 40 anos atrás, pode ter Nathan Drake mais como referência de explorador de tumbas e desbravador de florestas do que o próprio Indy. E está tudo bem. No fim as mesmas histórias acabam sendo contadas ao longo dos anos, só que com um tapa no visual e algumas modificações aqui e ali para não ficar descaradamente genérico.
No entanto, há um detalhe elementar em tudo isso: Indiana Jones nasceu no cinema e estabeleceu um nível bem alto para histórias de aventura e de exploradores e arqueólogos valentes. Se “Uncharted” trouxe uma novidade ao proporcionar algo parecido numa forma jogável, perde-se um pouco do sentido quando a série volta para o cinema. Já havia jogos de Indiana Jones, só que nenhum tão moderno ou sequer parecido com o que a contraparte do Playstation oferecia. Ou seja, finalmente era possível controlar o protagonista e navegar por conta própria pelos cantos secretos do planeta Terra, ao passo que os filmes só mostravam partes desse processo. Sendo justo, isso pode ser dito de qualquer jogo que se torna filme, a transição entre mídias muda a interação do usuário com o produto. A única chance de uma adaptação sobreviver enfrentando esses obstáculos inerentes é mostrando competência. É possível contar a mesma história e se safar, contanto que se conte melhor do que a última vez.
Já adianto que “Uncharted” não é melhor que “Raiders of the Lost Ark“. E em termos de contar uma história, não há nada de especial em sua trama que faça a jornada de Nathan Drake digna de destaque. Ainda se trata de uma caça ao tesouro e do civil arrastado a uma grande aventura e argumentar que há referências ao jogo tal e tal não salva obra nenhuma de si mesma. Nessa atual era de busca por referências e de expectativas por serviço ao fã, por vezes se esquece dos elementos mais cruciais da composição de uma obra de arte. Por exemplo, até poderia dizer que “Uncharted” mistura elementos do quarto jogo com alguns do primeiro e uma cena inteira de ação quase retirada do terceiro jogo; ou dizer que Nolan North, dublador de Drake em toda a série, faz uma participação especial e torcer para que isso seja o suficiente para agradar algum leitor. No fim, permanece o fato de que a idéia de envolver o irmão de Nathan na história vem do quarto jogo, que por sua vez empresta de “Indiana Jones and the Last Crusade” a idéia de mostrar a infância do protagonista e uma pessoa de seu passado. Ainda pode parecer que nada se inventa aqui para um espectador que não joga e ele teria uma parcela de razão.
Entenda-se que o filme não erra no roteiro, só não impressiona e, por sorte, compensa na ação. Essa é a melhor parte da experiência, sem dúvida alguma. É quando tudo passa a fazer mais sentido e até mesmo quando aquilo que define a série de jogos se manifesta na forma de acrobacias quase impossíveis e apostar nas chances mais improváveis para fazer as coisas darem certo de algum jeito. Um pouco de torcida, um pouco de fé e muito improviso. Ruben Fleischer faz o que não conseguiu recentemente em “Venom: Let There Be Carnage” e traz ação que sem demora evoca uma reação: ela é bem feita. O que poderia ser genérico e sem sal, aqui aparece com um cuidado impressionante na clareza do que acontece e dos movimentos realizados, sem uma dependência excessiva em efeitos especiais para realizar o impossível sem usar o bom senso. Como bem se sabe, é fácil o bastante negar a gravidade e distorcer as leis da física quando o objeto em questão é digital e pode ser manipulado como o artista quiser. Nunca se abusa muito disso, e só digo muito porque há um momento ou outro em que abusam da boa vontade.
Um problema que não deve afetar os espectadores desavisados, em contrapartida, é a escolha de elenco. Já os jogadores pressentiam desde bem antes do lançamento o erro que estava sendo cometido ao escolher Tom Holland para o papel de Nathan Drake. Não tem nada a ver. É até bizarro ver ele ao lado de Mark Wahlberg porque o próprio chegou a ser cotado para o papel de Drake em meados de 2010, quando ele tinha 38 anos de idade. Em comparação, Holland tem 25 e cara de ainda mais jovem. Soa errado. Por mais que a performance seja competente, e ela é, ainda é uma escolha muito errada de elenco e que claramente só aconteceu por conta da popularidade de Holland nos últimos anos. Wahlberg teria funcionado melhor interpretando na época o personagem de 30 e tantos anos como Drake é nos jogos, agora assumindo o posto de Sully, um coadjuvante que deveria ter 25 anos a mais que seu parceiro. Melhor uma diferença de 30 para 55 do que de 20 para 45 como aparenta aqui, ainda piorada pelo total descaso com a caracterização original. Sim, o bigode. Ambos fazem um bom trabalho, só são as escolhas erradas.
E então fica a pergunta: será que “Uncharted” ajuda a quebrar ou fortalecer o estigma de que adaptações de video-game estão fadadas a fracassar no cinema? Entre as duas opções, com certeza a primeira. Mas que não pareça também que é um acerto notável dentro do Cinema em si, como se fosse um filme incrível. Ele merece algum reconhecimento por não se colocar junto de tantas outras obras inspiradas por jogos, pois não decepcionará os fãs originais com sua fidelidade à essência dos jogos nem decepcionará o espectador que não sabe nada de nada, já que esse encontrará ação bem executada, boas atuações e atores famosos no elenco, assim como um bom entretenimento pelo valor do ingresso.