Em “Druk”, um grupo de quatro amigos decide testar uma teoria num experimento em que eles mesmos são as cobaias. Um certo psiquiatra levantou a idéia de que o ser humano tem um déficit constante de álcool no sangue e precisa manter o nível em 0.05 para atingir um nível de funcionamento ótimo, intelectual e criativo. Eles começam receosos, mas logo se empolgam com a idéia quando um deles abraça a nova rotina de se manter levemente embriagado todos os dias e ver quais os resultados. Nenhum deles esperava as consequências, nem as boas que aparecem e muito menos as ruins que surgem conformem o bom senso se dilui em álcool.
Não há nada como um filme com uma boa idéia. Vai além dos temas abordados ressoarem internamente com o espectador, é mais simples que isso: ele bate o olho na premissa e pensa que a obra tem um ponto. Claro que não é acidente que o conceito todo de “Druk” tenha embasamento na teoria de um psiquiatra de verdade, Finn Skårderud, o que torna tudo bem menos absurdo do que uma idéia ousada de cinema. Alguém pensou nisso e levou a teoria a sério. Cientificamente. E nem é pela base em fatos por si, a idéia é boa e parte de uma máxima popular no senso comum sobre as pessoas ficarem mais soltinhas com uma cervejinha, mais confortáveis com uma taça de vinho, mais ousadas com um shot de tequila, com o superego diluído em álcool e por aí vai. Não é à toa também que chamam bebida de coragem líquida. A primeira impressão é positiva.
E ela continua. “Druk” nunca deixa cair o nível até o final e só peca, talvez, em certo ponto da narrativa por se entregar um pouco à previsibilidade. E não muito. Seria surpreendente de verdade se o longa inteiro conseguisse manter o espectador na penumbra, vendo algo na claridade baixa sem estar totalmente na escuridão nem enxergando longe na claridade. Numa trama como essa, seria uma surpresa de fato porque as pessoas ficam cada vez mais burras quando bebem e pessoas burras são previsíveis. Assim, chega um ponto que é fácil imaginar para onde a trama vai se encaminhando. É só isso, aliás, não há nenhum detalhe a mais que me venha à mente como um problema grave. A previsibilidade nunca alcança um nível de expor todos os detalhes e perder a graça.
O tema não é apenas quantidade de álcool no sangue. Longe de ser um estudo científico dramatizado, quase documental, sobre uma teoria psico-neurológica real. Como todo bom filme, o conteúdo de verdade reside debaixo da superfície e fala sobre realidades humanas muito mais palpáveis do que desbalanços químicos corrigidos com bebida. Qual a idéia por trás de entrar em um experimento desses, afinal? Ninguém vai para o trabalho todos os dias carregando um cantil por inocência. Não é só curiosidade. Ela pode ser o empurrãozinho final para uma pessoa já desgastada e entediada de viver a vida inteira da mesma forma, anos demais numa mesmice que faz o sujeito clamar por mudança, seja ela qual for. É mais um clássico caso de crise de meia idade, ou melhor, quatro casos de crise de meia idade unidos por um mesmo propósito. Em uma situação normal, esses quatro amigos passariam a meia idade inteira, e talvez a terceira também, afogando as infelicidades em coquetéis, de qualquer forma. Eles só acham uma forma mais interessante de fazer isso.
Há ainda a crença de que o ser humano está sempre abaixo de seu potencial. Basta imaginar uma situação em que alguém recebe a certeza de que está operando no máximo de seu potencial. Seria a reação uma de felicidade ou de frustração por saber que não importa quanto ele se esforce, ele nunca passará daquele ponto? É assustador. Garantir à pessoa que ela nunca será melhor que aquilo, que a curva será decadente no resto da vida. “Druk” explora todas essas possibilidades em uma aventura supostamente boba de amigos querendo se entreter. E, sim, está tarde na madrugada e provavelmente parece que estou falando asneiras e tentando filosofar demais sobre o filme, porém posso dizer que não pensei em tudo isso de graça e estava esperando a primeira oportunidade de esvaziar esses pensamentos num texto qualquer. Tudo isso, da meia idade estagnada à insegurança em relação às próprias capacidades, está impresso na obra de alguma forma.
Isso não está nos fatos visíveis como a idade dos atores, o que seria uma inferência rasa, ou em suas profissões, o que seria uma inferência grave por assumir que ser professor é inerentemente patético e entediante. “Druk” mostra como é a vida de Martin (Mads Mikkelsen) dentro de casa e sua performance preenche os espaços do retrato de um indivíduo desiludido. Ele, junto do resto do elenco brilhante, exaltam a realidade estéril de suas vidas. O motivo para eles terem chegado ali não importa tanto quanto a existência do estado, que possibilita a história acontecer, e o que eles fazem a respeito disso. Há lados e lados dessa inteligente trama, um cômico e um dramático e um apenas intelectualmente excitante dentre eles. Há o entretenimento no estilo de “What Women Want” e outros trabalhos em que algo clica dentro da cabeça do personagem e ele passa a agir como uma pessoa completamente nova. Martin passa de um chato para alguém sagaz, desafiador e até um tanto charmoso de um dia para outro. Fantástico, não? Certamente, levando em conta a credibilidade passada pelos atores nessas mudanças; não tanto quanto as fundações dessa nova estrutura estão mais para vidro do que concreto, levando o experimento para lugares menos elegantes.
Há sempre dois lados para as coisas e, em uma esfera menor, “Druk” busca transmitira uma mensagem. Não é a maior lição a ser encontrada aqui, é apenas uma entre várias outras menores interligadas tão organicamente que não podem ser destacadas com facilidade, até porque essa não é uma obra de uma mensagem só, explícita e transparente. Talvez um drinque realmente faça milagres na hora certa, assim como pode ser o convite para uma algo bem menos elegante se for encarado da forma errada. Tudo depende. Só que a vida também é feita de experimentação e tomada de riscos, de ousadia e insegurança. Se isso se perde em algum momento, talvez não seja tão má idéia buscar algo que resgate esse espírito esquecido.