Um dos arrependimentos recentes foi não ter visto “Judas and the Black Messiah” no cinema. Em um ano que está mais para o Volume 2 do ano passado do que algo inédito, as cabines de imprensa foram escassas, raríssimas até. Poucos dias antes da cabine de “A Quiet Place Part II“, a pandemia foi oficialmente declarada pelo governo e todos os cinemas foram fechados, adiando para semana que vem, 1 ano e 4 meses depois. Mesmo assim, houve alguns períodos de respiro entre bandeiras vermelhas, laranjas e amarelas quando os cinemas puderam reabrir, e um deles foi bem no começo do ano com uma sessão desse filme que ainda estava para ser indicado ao Oscar. Um compromisso no mesmo horário atrapalhou os planos e se perdeu a chance de assistir a um dos melhores filmes de um ano incomum.
A vida de William O’Neal (LaKeith Stanfield) é feita de pequenos crimes e golpes elaborados para tentar se manter de pé e tirar uns trocados. Isso chega a um fim abrupto quando a polícia consegue pegá-lo, mas nem tudo vai pelos ares quando o FBI apresenta uma proposta para Bill para livrá-lo da prisão. Se ele conseguir se infiltrar na hierarquia do Partido dos Panteras Negras, uma organização política negra descrita como a maior ameaça à segurança nacional, ele terá sua liberdade e muitas regalias aguardando. Seu objetivo é monitorar os movimentos do grupo como parte dele e se aproximar de seu líder em Illinois, Fred Hampton (Daniel Kaluuya).
Assistir a “Judas and the Black Messiah”, foi, em primeiro lugar, uma experiência de saciar curiosidades após muitos anos tendo pedaços de informação aqui e ali sobre quem eram os Panteras Negras. Numa era em que Hollywood abraça entusiasmadamente histórias baseadas em figuras famosas, já era hora de abordar diretamente uma organização política que se fez presente em décadas cruciais da história recente dos Estados Unidos. E saciar curiosidade ele consegue. Antes de entrar em detalhes sobre temas, personagens específicos, enredo e outros aspectos técnicos, devo dizer que essa obra serve muito bem como material para os curiosos. Se a idéia é conhecer mais sobre o Partido dos Panteras Negras, nem que seja um pouco para despertar o interesse de pesquisar mais depois, o filme cumpre esse papel.
Mas é claro que essa está longe de ser sua única função. Não é um documentário e, se fosse, também não teria uma função simplista de apenas despertar interesse pelo assunto e expor um pouco de informação. Isso é um bônus, com o resto da obra mostrando conteúdo palpável na apresentação da rotina daqueles chamados Panteras Negras. Mais do que isso, acompanha a vida de um de seus líderes mais notórios, Fred Hampton, enquanto há um segundo elemento de destaque para que “Judas and the Black Messiah” não seja apenas mais uma biografia cinematográfica como a maioria. O segundo foco da história é Bill O’Neal, um rapaz que se aproxima de Hampton sob motivos escusos e se vê mais e mais envolvido com o homem e seus ideais. É o tipo de trama que praticamente exclama que algo vai dar terrivelmente errado em algum momento, sendo uma questão de “quando” em vez de “se”.
“Judas and the Black Messiah” se destaca pela sua história, antes de qualquer coisa. Essa não é uma narrativa biográfica tradicional, em parte por ser melhor que a maioria mas também por se estruturar diferentemente do clássico modelo de moldar o roteiro no período da vida em que o protagonista realizou seus grandes feitos, encerrando com texto na tela contando o futuro do indivíduo. Essa é tanto uma história de Fred Hampton quanto é de Bill O’Neal, até mais do segundo por ser contada sob seu ponto de vista e resultar em mais tempo de tela. Ademais, é bem mais interessante a odisséia desonesta de alguém agindo contra sua vontade e acabando de frente com sua própria consciência, mais do que a proposta tradicional de só expor a vida de um famoso porque, aliás, ainda sobra espaço para isso. As duas existem em conjunto e constroem uma narrativa essencialmente mais rica por não se limitar.
Só não há como fazer equivalência do tempo de tela com a qualidade das interpretações dos atores por trás das duas maiores peças de “Judas and the Black Messiah”. Os dois atores principais foram indicados ao Oscar merecidamente, sendo eles os elos que mantêm a experiência coesa em um nível emocional e pessoal. Isso poderia ser dito de qualquer boa interpretação, de fato, o que tornaria a crítica de cinema obsoleta por ser apenas um revezamento de elogios conforme são adequados, mas há de haver a necessidade de tornar a escrita um pouco mais interessante e explicar por que Daniel Kaluuya fez por merecer seu Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Sim, coadjuvante porque as duas indicações foram para essa categoria em vez de separar ou colocar os dois em Melhor Ator. Isto é, um vencer impede o outro.
Para quem não conhecia absolutamente nada de Fred Hampton e não sabia o que esperar ou tinha material para comparar, ver Kaluuya poderia ser uma demonstração morna e sem impacto. O exato oposto acontece quando ele desperta a atenção do espectador e a direciona para si e sua figura quase mítica e ao mesmo tempo muito palpável, profundidade como é sentida em um ser humano acessível. Ele está ali, tomando seu café de camisa e jeans, conversando sobre qualquer coisa com uma moça que começou a trabalhar no Partido. As pessoas respeitam ele, mas ele nunca é tratado como um deus em “Judas and the Black Messiah”, apesar do título. Seu retrato humanizado é amplificado ainda com a presença de LaKeith Stanfield funcionando como prova viva de sua vulnerabilidade, no fim das contas. Todavia, esse é um filme desse último tanto quanto do primeiro, pois Stanfield não perde a chance de mostrar quão retorcido e torturado seu eu interior está conforme é manipulado e coagido a agir contra seu coração. Se dependesse de mim, o Oscar seria dele. Ou dos dois, sendo justo.
Não se pode esquecer da ambientação de uma Chicago soturna, suja e obscura criada aqui. É uma bela cidade com um lado não tão sofisticado, tal como as imagens atraentes de um cenário austero junto de um Jazz inquietante, cuja função é ir na direção oposta da glamourização e deixar o espectador incomodado de fato. É como uma mensagem de que há algo muito errado sob a superfície. Como “Judas and the Black Messiah” mostra, é só uma questão de tempo até que as suspeitas se confirmem e se perca um pouco de fé na humanidade. Ninguém é poupado dos planos dos poderes maiores, como fica bem claro no filme.