Lembro que quando a febre de Originais Netflix começou, havia gente aos montes elogiando tudo que saía com o selo. Começando com “House of Cards”, depois com “Orange is the New Black”, “Hemlock Grove”, “Daredevil” e outros como “Narcos” e “Stranger Things”, as pessoas estavam morrendo de amores pelos lançamentos. E, claro, conforme o número de produções foi aumentando, algumas coisas não tão boas surgiram e outras bem ruins também. A opinião pública, volátil e normalmente radical, virou ao avesso e os Originais já não eram mais tão interessantes assim, chegando a serem motivos de desinteresse até. Hoje, com outros serviços de streaming na competição, não se fala mais tanto do assunto, ao passo que os lançamentos continuam vindo. “The Devil All the Time” é um daqueles que elevam a reputação do serviço, sem dúvida.
Arvin (Tom Holland) cresceu em uma família distante do resto da cidade, isolada em seu canto, cuidando de seus próprios assuntos sem se preocupar com as opiniões e julgamentos externos. Uma vida baseada em trabalho, sossego e uma devoção à religião sempre guiando cada passo. Mas nem isso livra a família de tragédias, que praguejam e marcam os membros dela para a vida, especialmente o jovem Alvin, que cresce com uma nada modesta cota de traumas. Resta apenas sua lealdade às pessoas queridas que restam, gente que ele se mostra mais que disposto a proteger a qualquer preço.
Eis uma obra diferente. “The Devil All the Time” passa longe dos moldes tradicionais de narrativa ou, colocando em outras palavras, não é tradicional em sua proposta. Sem seguir convenções já bem cimentadas do cinema popular, ele busca contar sua história como um recorte no tempo de um lugar em particular, algo que talvez fizesse mais sentido num seriado. “Twin Peaks” faz isso e não está sozinho. De alguma forma, esse longa-metragem consegue capturar o mesmo espírito sem perder o foco e deixar que personagens caiam na superficialidade por não serem explorados à maneira clássica de estarem presentes quase a todo momento. Sendo razoável, há um protagonista em Alvin, só não diria que é apenas ele quem leva para frente a história ou a representa.
Existe um todo mais profundo que simboliza a história de “The Devil All the Time”, algo que vai além de personagens e de indivíduos, mais relacionado à força motriz por trás deles e sua influência sobre os comportamentos. A fé pode mover montanhas… E quanto à crença? Não apenas uma crença religiosa mas também acreditar que algo é verdade ou é certo rigidamente. Moralidade não chega a descrever bem, é apenas uma parte de uma discussão que também aborda organicamente hereditariedade, valores levados para frente de forma distorcida ou não, os atos do pai formando o filho e o resultado se dando de forma imprevisível. Somando religião à essa amálgama, a história toma forma com mais de uma face e foge da acusação de superficialidade e falta de direcionamento. Há um argumento bem definido sobre obstinação, fanatismo e corrupção moral permeando a obra.
Por trás disso há atuações impressionantes de atores inesperados, por assim dizer. Dois dos grandes nomes são Tom Holland e Robert Pattinson, o Homem-Aranha e o vampiro que brilha. Não são as primeiras escolhas, imagino, para um filme soturno, sóbrio e até violento com um toque de “No Country for Old Men”. Felizmente, Holland prova que a personalidade jovial de seu papel como super-herói não é o limite de suas habilidades dramáticas, apresentando um rapaz que ostenta cicatrizes profundas sem verbalizar isso, raramente usando a palavra para se manifestar. O tipo forte e silencioso de Gary Cooper, como diria Tony Soprando. São seus atos, junto com o silêncio, que expressam a dor que habita o rapaz. Já Pattinson havia mostrado antes ter saído da sombra de seu passado crepuscular com papéis e filmes bem avaliados. Em “The Devil All the Time”, sua presença é um pouco menor que a de Holland em termos de tempo, porém não deixa faltar nos quesitos relevância e impacto. Ele se faz notar por seu sotaque estranho e caráter asqueroso.
Pensando em retrospecto, seria fácil se perder em uma história como essa, um pouco mais solta em relação a acompanhar o trajeto de um só protagonista. Por conta dos dois períodos temporais apresentados em ordem cronológioca, de atores e contextos diferentes, o espectador tem menos tempo para associar que Tom Holland, por exemplo, é o mais próximo que há de um protagonista. Acrescentando mais um arco que parece não ter relação nenhuma com nada, a situação parece ainda mais complicada para “The Devil All the Time”. Acontece que outro de seus grandes feitos é criar uma história engajante desde o começo, um enredo que prende quando ainda falta uma figura com quem se conectar. Mesmo quando parece um filme sem perspectiva, que não dá pistas para onde está indo, ele ainda mantém o espectador interessado nos eventos inicialmente chocantes e posteriormente relevantes a fim de evitar que sejam gratuitos, violência por violência. Além do mais, trata-se de uma obra muito apreciável aos olhos, principalmente numa televisão com tecnologia HDR. É uma visão de locais soturnos e deprimentes em escalas de tons escuros, criando um clima de cidade pequena ainda feita de muita madeira, cada dia mais apodrecida pela umidade; um lugar infernalmente claustrofóbico para aqueles condenados a passar o resto de uma triste vida nela.
“The Devil All the Time” foi surpreendentemente bom. E não por causa de algum preconceito contra as produções originais Netflix, eu apenas nunca havia ouvido falar dele antes de assistir. Nem bem, nem mal. Nada. Um amigo me mandou aleatoriamente o trailer, assisti e achei interessante. Depois conferi o longa antes mesmo dele, então foi realmente uma situação de matar a curiosidade por vontade própria, sem coerção. A surpresa foi ver que a crítica não foi tão gentil. Não foi um massacre, porém ainda consideravelmente abaixo do grande filme que encontrei aqui. De qualquer forma, imagino que mesmo os que não acharem tão incrível vão encontrar uma obra bem acima da média do que se costuma encontrar no catálogo do serviço.