Imagine um seriado com um casal gay, uma família tradicional branca americana, um baby boomer preconceituoso, dois latinos e um asiático. Não parece uma coisa impossível hoje em dia, é até bem fácil de encontrar com o tema de representatividade de minorias em alta. “Modern Family” trouxe isso. Em 2009. Pelo menos 5 anos antes de toda essa conversa sobre etnias e minorias começar a tomar força e ter a magnitude que tem hoje dentro dos círculos artísticos, mais focados em produzir conteúdo etnicamente relevante e exercitar práticas inclusivas. Não sei dizer como foi a recepção na época, mas sei que eu não estava muito preocupado com esses temas quando usava meu uniforme de primeiro ano do ensino médio. Fui conhecer a série na casa de um amigo apenas anos depois, em torno de 2015, mas não consegui gostar tanto nem achar tão engraçada a ponto de querer continuar. Mais uns anos depois e a pandemia de 2020 trouxe “Modern Family” de volta à minha casa, dessa vez para ficar.
Jay Pritchett (Ed O’Neill) é um empresário de sucesso no ramo de closets, um pai de família chegando nos anos dourados da velhice que vê seus dois filhos já crescidos criarem suas próprias famílias. Claire Pritchett (Julie Bowen) é a filha querida que acabou engravidando de um bobão simpático da faculdade chamado Phil Dunphy (Ty Burrell). Haley (Sarah Hyland) nasce, depois Alex (Ariel Winter) e então Luke (Nolan Gould), eles são a filha festeira, a filha estudiosa e o filho burrinho. O outro filho de Jay é Mitchell Pritchett (Jesse Tyler Ferguson), que, depois de anos lutando para se assumir gay, vive como marido de Cameron Tucker (Eric Stonestreet) e pai de Lily (Aubrey Anderson-Emmons), garotinha vietnamita que adotam. Para completar, o próprio Jay ganha uma nova família quando casa com uma jovem latina chamada Gloria (Sofía Vergara) e participa da criação do filho dela, Manny Delgado (Rico Rodriguez).
Moderno sem ser forçado.
A idéia de “Modern Family” pode não parecer nada demais hoje em dia, então não se pode dizer que foi um oportunismo ou uma aderência a tendências. O lado bom disso é que não havia um discurso pronto, uma pauta ou uma agenda para serem reproduzidos no seriado. Era uma proposta relativamente original: a típica família americana em um seriado de comédia como tantos outros que vieram antes, de “Full House” a “Married… with Children”. O diferencial era ser um tipo de grande família envolvendo também os filhos dos filhos e mais, um casal gay e uma esposa latina para deixar tudo um pouco menos tradicionalmente americano. De começo, o conflito já está posto com Ed O’Neill — também protagonista da mencionada “Married… with Children” — representando a velha guarda e seus preconceitos através do atrito com seu filho gay Mitch, além de também ter uma esposa latina muito mais nova, extremamente atraente e mãe solteira. Ele não sabe como aceitar direito seu filho e acaba cometendo gafes pesadas ou pisando na bola; ao passo que deixa de lado o olhar torto para imigrantes quando a imigrante é sua esposa esbelta. Enquanto isso, Mitch e Cam realizam o sonho de adotar uma criança sem saber direito como as coisas funcionam na paternidade e enfrentam as peculiaridades de sua situação como pais gays. Já a família dos Dunphy é um pouco mais tradicional: marido, esposa e três filhos.
Em nenhum momento parece que “Modern Family” força a mão em sua proposta de representatividade, de explorar temas artificialmente como se tivesse que repetir as mesmas coisas que são lidas em redes sociais diariamente por quem busca realizar algum tipo de afirmação de cunho sociopolítico, só tenta. Arriscaria dizer que sequer há uma tentativa de defender uma pauta explicitamente. A série é muito orgânica na abordagem de alguns temas, em parte porque usa a comédia para ilustrar algumas situações peculiares da vida daqueles personagens. Poderia ser um drama? Claro. Mas já existem outros trabalhos com esse intento. A idéia aqui é explorar o lado cômico de um casal de pais indo matricular a filha na escolinha e não sabendo como agir na frente da diretora para passar uma boa impressão sem parecerem coitados, por exemplo. E como tudo muda quando alguém fala que eles podem entrar em qualquer escola por serem um casal gay com um bebê asiático, porém encontram um casal lésbico com uma criança negra na concorrência. São várias situações como essa, engraçadas e inusitadas e nem tão recorrentes assim, pois há uma grande evolução nos temas abordados ao longo das 11 temporadas que a série ficou no ar. Bastante coisa. Pode ser desmotivador num primeiro momento porque é difícil pensar em encarar 10 temporadas além da primeira quando se começa, assusta pensar no investimento de tempo. Por sorte, vale mais a pena do que não.
Genuinamente engraçado
O lado bom, ótimo até, é que essa é uma série de comédia entre poucas que são engraçadas a nível de fazer rir. Sim, dar risada das situações e das tiradas, dos comentários e dos maneirismos de cada membro da família, das vezes em que Cam e Mitch chegam em uníssono falando “Heeey” e de quando Gloria desenrola o inglês mais latino de todos os tempos — recomendo ver os erros de gravação para uma dose extra. São várias pequenas coisas que constroem a excelência das primeiras temporada. As grandes também, na verdade, há simplesmente muitos acertos para acompanhar, muitas pequenas piadinhas e elementos engraçados que aos poucos trazem o espectador mais perto de rir. Pensando estrutura em termos mais ilustrativos, é como se fosse um videogame: as piadas, pequenas e grandes, os comentários, as situações vão aos poucos preenchendo uma barra que, quando cheia, desperta a risada, porém sempre mantendo a constância para não deixar a barra esvaziar ou, em outras palavras, a bola quicar.
Devo dizer apenas que exige um certo investimento de começo. “Modern Family” não conquista já no primeiro episódio e deixa o espectador vidrado, querendo maratonar a temporada inteira no mesmo dia. Demora um pouco para entender direito o que está acontecendo, principalmente quando se sabe pouco sobre a premissa. São muitos personagens e leva um tempo para entender quem é irmão de quem, filho de quem e um pouco mais ainda para conhecer os personagens em si, entender quais são seus papéis-base dentro da história. Luke, por exemplo, é o filho mais novo e o mais atormentado por suas irmãs mais velhas por ser devagar no raciocínio, longe de ser o filho mais esperto; as duas irmãs, por sua vez, brigam entre si porque a patricinha baladeira popular no colégio não se dá com a irmã inteligente, socialmente estranha e mal vestida. Basta pensar no caos de uma casa com filho e multiplicar por três. Três crianças brigando ao mesmo tempo deixando todo mundo maluco.
Depois que isso passa e o espectador já está acostumado com o jeito de cada um, “Modern Family” engrena com fluidez e até se torna mais engraçado. Talvez o problema tenha sido ser apresentado com o seriado na metade, sem que muita coisa fizesse sentido. Só havia entendido que a latina musa era casada com o velho e não muito mais que isso. Seguindo as coisas como deveriam, tudo funciona com muito mais suavidade assim como a dinâmica clássica de seriado de se apegar aos personagens aos poucos. Afinal, são muitas temporadas e uma história sobre cotidiano, situações banais tornadas engraçadas. Por sorte, todos os atores são muito bons e cumprem seu papel de se tornarem figuras carismáticas para a audiência, gente que a faça querer acompanhar por dezenas de episódios. Todavia, vale dizer que nem todos são igualmente engraçados. Carismáticos, legais, suficientes? Com certeza. O outro lado é que alguns são apenas melhores na comédia, ou então seus personagens são mais bem escritos e têm mais espaço no roteiro. Não sei dizer com exatidão. Há uma diferença entre Ed O’Neill, veterano de sitcoms, e Ariel Winter, a menos cômica da família Dunphy. Ninguém chega a incomodar dos principais, não há um personagem chato, só alguns coadjuvantes que chegam no meio do caminho e nem sempre se encaixam acabam destoando um pouco.
A passagem do tempo é entretenimento à parte.
E o tempo passa. Logo se chega na oitava temporada, na nona e tudo mudou. Para onde foram aquelas criancinhas pequenas com voz fina e carinhas de bebê? Pois é. Por “Modern Family” ser bem extensa, é inevitável ver o elenco ficando mais velho, só que de um jeito diferente aqui. Há muitas crianças no elenco. Os adultos mudam, envelhecem? Sim, o cabelo de Ed O’Neill aos poucos vai ficando mais grisalho e branquinho, os outros envelhecem um pouco também. Já os mais jovens passam por uma transformação bizarra, mudando completamente quem eram no começo a ponto de ficarem irreconhecíveis. É até engraçado ver cenas dos primeiros episódios quando se está nas últimas temporadas e ficar chocado com o quanto todos mudaram. Luke, Hailey e Alex mudam muito, ao passo que Lily literalmente passa por toda a infância e termina o seriado na pré-adolescência. Um prazer extra, sem dúvida, e um que torna os personagens ainda mais queridos. É fácil se sentir parte do crescimento daquelas pessoas, como alguém que acompanha mais do que uma história com muitas temporadas. Infelizmente, o tempo traz outras questões um tanto menos felizes.
Muito tempo no ar tem seus problemas.
Como se pode imaginar, ficar tanto tempo no ar traz algumas coisas não tão agradáveis. A primeira pergunta, e a mais natural, é: há história para tantas temporadas? Alguém pode pensar em se tranquilizar a respeito disso porque se trata de uma comédia, um gênero que não se apega tanto a um enredo extenso e arcos narrativos de vários episódios. Mesmo assim, há o risco de faltar idéias. Esse é o maior problema de “Modern Family”. Chega um ponto em que a temperatura das primeiras temporadas diminui e o já não é mais tão engraçado, inovador ou divertido. Talvez em meados da oitava, nona temporada isso acontece mais claramente. Os episódios geniais já não se encontram mais tão frequentemente, os mornos aparecem mais e às vezes só se continua assistindo porque já se foi longe demais para desistir. No entanto, não é como se “Modern Family” fosse da genialidade para o lixo. As últimas temporadas ainda são boas, completamente digeríveis e de bom gosto. É a diferença entre excelente e bom.
Já é notável o bastante para perceber a mudança com o tempo. Chega um momento em que parece que o brilho diminui, em que as idéias parecem ter esgotado e algumas se repetem. Nem dá para culpar os roteiristas direito, pois criar conteúdo para onze anos do mesmo universo não é tarefa fácil. Assim, alguns modelos de trama passam a se repetir. Sem contar com os episódios temáticos de Halloween, Natal, aniversário de casamento e outras datas, alguns conceitos aparecem recorrentemente. Um exemplo clássico é o episódio em que alguém mente ou causa algum tipo de intriga, alguém mais repete isso com outra pessoa e o processo vai indo até todo mundo estar com as mãos sujas, então no final do episódio a falácia de todos cai ao mesmo tempo e eles são obrigados a serem honestos em tempo para a moral da história na conclusão. Não é tão grave assim, “Modern Family” não é o primeiro seriado a repetir fórmulas, trata-se de um detalhe que fica mais evidente quando o resto brilha menos.
Outros pontos também ficam mais fáceis de enxergar, alguns deles podendo até serem responsáveis pela queda que ocorre. Por exemplo, chega um ponto nas últimas temporadas em que alguns personagens aparecem menos, principalmente as crianças. Há uma justificativa dentro da história para isso — fora dela seria o apelo reduzido das crianças adultas — porém é claro que as deixam de lado porque chega um ponto em que pagar o cachê de um elenco fixo de mais de 10 atores em temporadas de 22 episódios fica pesado, em especial porque os salários sobem a cada ano. Como não dá para tirar os adultos da história tão facilmente, então sobra para eles levarem “Modern Family” nas costas. E eles conseguem. A sorte é o elenco ser muito competente e dar conta, como Ty Burrell se destacando muito em seu maior tempo de cena, senão a decadência seria muito pior.
Ainda um saldo bem positivo.
Claro que a nota de “Modern Family” seria maior se tivessem encerrado o seriado na oitava ou na nona temporada. O período de limbo relativo ou a extensão desnecessária cobra seu preço, ainda que não seja um caso dos mais graves em que não faz sentido nenhum dar continuidade ou que chega a estragar os méritos anteriores. Apenas fica cômodo demais, diferente sem uma alternativa equivalente à anterior em termos de criatividade. No fim, ainda é um saldo bem positivo que não mata o mérito de uma das melhores séries de comédia da atualidade. É especialmente interessante para quem mora, morou nos Estados Unidos ou conhece bem a cultura cotidiana de lá. Pode ser uma experiência nostálgica interessante e até engraçada porque “Modern Family”, sendo uma típica história de família americana, sabe tocar bem nos pontos engraçados, contraditórios e bizarros dessa cultura.