Um filme que fez menos barulho do que o esperado em seu tempo e agora mais relevante do que nunca? Talvez. Recentemente houve críticas a trabalhos antigos por suas representações datadas, sendo que existem vários outros que fazem um ótimo trabalho na abordagem do assunto. “Lincoln” é um deles. Sua história volta aos princípios da luta, ou melhor, aos momentos mais críticos do conflito que dividiu os Estados Unidos e representou uma das grandes vitórias contra o racismo, uma recriação visual e historicamente rica de um pedaço da História por Steven Spielberg. Não posso dizer que é um de seus melhores trabalhos, apenas um que ostenta méritos pontualmente notáveis.
A Guerra Civil Americana chega cada vez mais perto de seu fim. Com os ambos os lados cansados da violência e ansiando pela paz e uma nação unida, cabe ao presidente tomar as decisões necessárias e nem sempre fáceis para restaurar a ordem. Isso vem com seu custo e, antes de chegar à medidas definitivas, a questão da escravidão no país permanece como um ponto a ser resolvido. Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis) se coloca no olho do furacão tentando acabar com as mortes nos campos de batalha ao mesmo tempo que tenta aprovar a 13ª emenda da constituição, aquela que emancipa os homens negros escravizados perante a lei.
É engraçado como informações aleatórias costumam vir à tona em momentos como escrever um texto desse. “Lincoln” não chamou minha atenção em seu lançamento e acabei por passar os quase oito anos desde seu lançamento sem assistir. Naturalmente, pensei pouco nele porque não tinha razões para isso e, no entanto, começando esse texto me lembrei de comentários diversos feitos na época pela crítica e por quem assistiu. Um exemplo é o do filme ser meio chato, com diálogos longos e muitos deles, ter linguagem complexa e uma seriedade de abordagem que deixava a experiência pesada, não das mais fáceis de acompanhar. Ou será que essas foram minhas impressões de agora e estou tendo memórias falsas? Seria interessante, mas sequer concordo completamente com todas essas afirmações para abraçá-las como minhas. É mais uma coincidência de concordar com a aparente opinião popular da época.
Chato é o adjetivo oficial do grande público na hora de categorizar um filme que falha em ser engajante; sem esquecer, é claro, que às vezes basta ser um pouco mais lento ou menos convencional para ser tratado assim. “Lincoln” é um misto desses dois casos. Acontece que o julgamento simplista da audiência pode ser certeiro em descrever um problema narrativo, de algo que não funciona, mesmo que faltem as palavras para apontar onde ele está localizado especificamente. É fácil entender por que alguém poderia se entediar porque esse é um longa-metragem cheio de detalhes sobre procedimentos e menções de nomes aos montes a respeito das pessoas envolvidas num governo em guerra e em tumulto político. Faz sentido haver muitos detalhes num processo de emenda constitucional. Sendo uma apresentação rasa uma alternativa infeliz, é cabido dar ao assunto sua devida complexidade.
Mesmo assim, é difícil aceitar a proposta vista aqui como a única ou a melhor. “Lincoln” de fato se torna cansativo conforme se repetem algumas rotinas de discursos, contemplação introvertida, persuasão da oposição e alguma citação literária usada como argumento. A história oscila entre cenas interessantes e outras não tanto, com personagens e momentos cativantes elevando a experiência acima da monotonia ocasionalmente. O primeiro é Tommy Lee Jones, um rosto que não esperava encontrar aqui e menos ainda como um ponto alto interpretando o homem com as melhores ofensas de todos os tempos. Claro, escrever falas longas dedicadas exclusivamente a insultar outra pessoa sem usar palavrões nenhuma vez sequer é mérito do roteirista, mas as palavras saem da boca do ator com uma naturalidade que no mínimo faz ele merecer uma fatia considerável do mérito. Das partes ruins, apenas a família do protagonista é passível de crítica por ser uma fonte desnecessária de melodrama performático, personagens e atuações exageradamente óbvios em suas intenções.
Falar de atuação é falar de Daniel Day-Lewis. É inevitável. É pouca surpresa perceber que esse é um espetáculo dele também. Dentre as qualidades, é a retratação de um dos maiores presidentes dos Estados Unidos que se sobressai porque, afinal de contas, o filme se chama “Lincoln” e não “A Promulgação da 13ª Emenda”. Imagino que pelo protagonista ser um presidente, sobram registros e documentações da vida, atos e personalidade, infelizmente nada como vídeos mostrando o homem como ele era de fato, diferente de várias outras biografias que tinham material de pesquisa de sobra com os maneirismos do sujeito em questão. Como julgar o de Abraham Lincoln de Day-Lewis então? Não há uma resposta concreta, apenas uma impressão subjetiva que pode convencer o espectador ou não. Para mim, é mais do que satisfatório ou, no mínimo, uma imaginação vívida o bastante para criar uma personalidade a partir de descrições e relatos históricos com mais de 150 anos.
Arrisco dizer que “Lincoln” parece fidedigno a ponto de pode ser considerado retratação definitiva do presidente no imaginário popular. As pessoas, mesmo os americanos, dificilmente têm o esforço de vasculhar informações históricas apenas para ter sua própria visão de quem era o presidente. É difícil argumentar contra uma forma de convencimento forte como Daniel Day-Lewis interpretando a figura através de imagens vivas, falantes e em movimento, um rosto contra ilustrações e fotografias antigas. Se tudo é uma mentira, então é uma muito bem contada. Uma pessoa, seja lá quem possa ser, nasce nos esforços da produção em mostrar um homem culto, calmo e parcimonioso mesmo diante de um mundo de responsabilidades e da pressão de fazer a coisa certa. Eram tempos diferentes que permitiam coisas como um presidente caminhar livremente pela rua sem medo, sem a formalidade faustosa entre o chefe da nação e a população. Eram tempos diferentes e um homem diferente também, dono de uma humildade que o aproximava de seu povo também literalmente, não só nas coisas que fazia em seu ofício pelo país.
Tudo que há em torno do personagem também recebe a devida atenção e os Estados Unidos do Século 19 se mostra um lugar rico em detalhes. Mais do que um plano de fundo ignorável, a ambientação não consegue evitar chamar atenção para quão soturno e cheio de lama e sujeira as coisas eram antigamente. Não há elegância nem charme, tudo é até um tanto decadente e sem brilho. Lincoln mesmo não é glorificado artificialmente, embora seja protagonista, e suas conquistas cobram seu preço ao final de tudo. Assim, buscar um caminho diferenciado na apresentação eventualmente culmina no final e no momento que muitos esperavam ver numa obra sobre Abraham Lincoln. O roteiro foge do óbvio quando escolhe algo diferente disso, mas também não traz nenhuma alternativa satisfatória em seu lugar, deixando a conclusão um pouco oca, carente de um impacto forte.