Já fui questionado várias vezes a respeito do meu sistema de notas e como algumas delas são bem mais comuns do que outras. Bem, este é um exemplo bom do que acontece ocasionalmente. “Criss Cross” é um Noir lançado em 1949, dirigido por Robert Siodmak em sua segunda parceria com Burt Lancaster depois de “The Killers” em 1946. Mal recebido em sua época, foi anos mais tarde reavaliado como um dos melhores do gênero e colocado em várias listas reunindo a nata do gênero. Pois bem, é nas recomendações dos grandes, dos importantes e dos influentes onde busco o que assistir, então é mais provável que sejam obras de algum prestígio ou excelência. Se minha apreciação não iguala à de quem recomendou, muitas vezes acontece de cair num patamar mais baixo que a grandeza absoluta, sendo bom, como “Criss Cross”.
Steve Thompson (Burt Lancaster) esteve fora da cidade por alguns anos, trabalhando no que aparecia e mudando sempre para tentar distrair sua mente daquilo que o tirou de Los Angeles em primeiro lugar: o casamento fracassado com Anna (Yvonne De Carlo), que só recentemente parou de tirar seu sono. Eis que a vida o faz retornar à cidade, voltando a morar na casa da família e a freqüentar os lugares de sempre. Eventualmente outras partes do passado voltam a aparecer e tornar o retorno não mais tão agradável. Steve acaba reencontrando a ex-esposa e reacendendo sua louca obsessão por ela sem saber que ela tem sido vista na companhia de Slim Dundee (Dan Duryea), um gângster local.
Não vou nem começar a falar do espetacular título brasileiro. “Baixeza”. Apenas isso. Nem para ser uma palavra elegante como “Pérfida”. Não, “Baixeza”. Enfim, eis linhas sendo gastas implicando com uma tradução dos Anos 40. Há assuntos mais interessantes sobre “Criss Cross” e um deles é a direção de Robert Siodmak que já traz na primeira cena um objeto de estudo e comentário de acadêmicos do cinema, que encontraram nela um movimento de câmera ainda pouco comum no repertório dos cineastas da época. Trata-se de um exemplo de produção de baixo orçamento, o tal Filme B, aproveitando a expectativa baixa sobre ela para flexibilizar os limites da forma impostos pelo sistema de estúdio. Com risco menor vinha espaço para experimentação. E qual seria a relevância disso? Além de ser um fato histórico relevante, é uma tomada que dá uma abertura e tanto à história, unificando dois dos pontos mais fortes aqui.
A direção de Siodmak traz mais do que novidades, traz também funcionalidade para suas idéias a fim de não serem meros artifícios a serem mais bem usados e aperfeiçoados por outros profissionais mais competentes. A tal cena de abertura termina com um foco no casal de Burt Lancaster e Yvonne De Carlo. Eles compõem outro forte de “Criss Cross” trazendo nas performances intensidade que casa tão bem com os visuais carregados e a trilha sonora na construção de uma atmosfera pesada. Indo além, traz também a camada a mais que viria a faltar em outras áreas do longa, preenchendo os vácuos da escrita de personagem com as sutilezas inomináveis de uma boa atuação
O grande problema de “Criss Cross” é ser simplista. Não raso, como se se propusesse a certo fim e o alcançasse com esforço incompatível ou apenas abordasse certo assunto a partir do óbvio e do esperado e nunca ir além disso. Simplista porque sua história é exatamente o que está descrito no breve parágrafo de premissa com a adição de um agravante nos planos. Casamento entre homem e mulher termina mal. Homem sai da cidade por anos. Homem volta e reencontra mulher. Mulher é vista na companhia de um bandido. Problemas surgem. Noir acontece. Fim. E é isso. Esse é mais um entre vários filmes que trazem o texto “The End” quase imediatamente após o último evento relevante. Às vezes funciona porque tudo chega ao final enquanto o espectador ainda está digerindo certos eventos. Aqui, em contrapartida, parece que há uma pressa inexplicável para encerrar logo.
No entanto, não diria que os últimos segundos resumem o simplismo mencionado, ele apenas coroa um processo que há muito tempo vinha dando sinais de economia narrativa excessiva, a tal da economia burra aplicada ao cinema. Falta um “Esqueça, Jake. É Chinatown” para dar um tempero a mais a um final súbito. Falta muita coisa em muitos lugares. “Criss Cross” sofre por ser uma história direta ao ponto em detrimento de um enredo robusto, com personagens escritos para além de suas funções no roteiro. Muitas vezes o evento toma procedência sobre o personagem e até a lógica. Por exemplo, o protagonista quer aprontar uma bobagem e tem como amigo antigo um policial que já começa desconfiado. E é claro que a bobagem é feita a despeito de quão óbvio seria para qualquer pateta ligar os pontos. Poderia ser uma insistência intencional no erro por parte do protagonista? Claro. E então poderia haver um tempo para elaborar na obsessão cegante por trás do ato precipitado. São repetidas situações assim que deixam o roteiro parecendo uma transposição direta de um conceito vago.
Seria mesmo esse um dos melhores Noir de todos os tempos? Afinal de contas, é o segundo lugar na lista de Eddie Muller, criador da Film Noir Foundation e um nome respeitado no assunto. Foi por causa dele que me incentivei de fato a assistir, ver tão alto numa lista que parecia bastante razoável por ter “Sunset Boulevard” nas primeiras posições e também “In a Lonely Place”, que depois da recomendação veio a ocupar meu segundo lugar na lista dos melhores. “Criss Cross” é outra história. Mal chega perto de se equiparar a qualquer um desses dois, por exemplo, em profundidade, sofisticação e singularidade narrativa, não entra nem para os 25 melhores. O que não quer dizer que seja um filme ruim. Ainda preciso assistir mais do gênero para chegar em uma obra que eu realmente não goste. Várias, incluindo essa, ainda estão numa faixa de competência suficiente para serem bons filmes, só não entre os grandes.