Uma das minhas alegrias pequenas da vida de consumidor compulsivo foi encontrar a coleção em Blu-Ray de Alfred Hitchcock com 14 filmes por 110 reais. Uma das minhas tristezas foi perder o box de “Twin Peaks” por 50 reais e nunca mais encontrar para vender senão por preços absurdos no Mercado Livre. Mas esse último não vem ao caso. Fiquei muito feliz com o achado por poder finalmente desfrutar de várias obras de um dos maiores diretores de todos os tempos, muitas das quais eu ansiava para assistir faz tempo… ou não. Uma pequena infelicidade foi ver que boa parte da coleção era composta por obras não tão populares ou tão bem conceituadas, várias do final da carreira de Hitchcock. “Spellbound” era um dos que eu queria muito ter encontrado no meio, a primeira parceria do cineasta com Ingrid Bergman.
A Instituição Green Manors é um centro de saúde mental onde pessoas enfrentando desordens psicológicas podem encontrar tratamento nas mãos de uma equipe especializada enquanto estiverem internadas lá. Para seu coordenador, Dr. Murchison (Leo G. Caroll), chega sua hora de abrir espaço para o recém-chegado Dr. Anthony Edwardes (Gregory Peck), um homem que surpreende todos por ser tão jovem e atrai rapidamente os olhos da frígida e racional Dra. Constance Petersen (Ingrid Bergman). Mas quando evidências surgem de que talvez Edwardes não seja quem alega ser, começa uma investigação envolvendo crime e os cantos mais soturnos da psique humana.
Psicologia e cinema estão lado a lado sempre. Não há como escrever qualquer coisa sem tocar no assunto, seja um desenho animado do mais bobão ou um filme extremamente ruim. De um jeito indireto ou direto, a psicologia está presente na forma como o autor acaba se expressando e se colocando na folha de papel do roteiro, por mais que seja de qualidade questionável. Afinal, nem todas as pessoas são inteligentes e nem o intelecto carente escapa das tentativas do indivíduo de se expressar artisticamente, enquanto os melhores exemplos usam das crenças, virtudes e experiências de alguém que sabe reorganizá-las em função de uma narrativa coesa.
Entretanto, abordar psicologia diretamente, como profissão ou como teoria, é um pouco mais raro. O personagem psicólogo aparece vez ou outra apenas, não é exatamente a escolha mais popular dos roteiristas porque a profissão em si é pouco cinematográfica. Qual a graça de ver duas pessoas sentadas numa sala conversando? Até pode funcionar, como se vê em “The Sopranos” e “Good Will Hunting”, ou em versões diferenciadas como “Cracker”, “The Alienist” e a recente “Freud”. Lançado em 1945, talvez “Spellbound” seja um dos primeiros exemplos do cinema a abordar o assunto tão diretamente, aproveitando a onda de popularidade crescente da psicanálise como tratamento psicológico em tempos de turbulência social e política. Essa é uma das características mais marcantes de “Spellbound” e seria a única se não fosse a participação de Salvador Dalí no design de produção de uma seqüência de sonho relacionada ao lado psicanalítico da obra.
Em teoria, isso não parece um sinal muito bom porque outros trabalhos de Hitchcock costumam chamar a atenção por razões diferentes, que ilustram sua competência em vez de características pontuais. Pelo menos uma dessas partes é de fato esmerada, a presença de Salvador Dalí no design de uma seqüência de sonho é uma das oportunidades de ouro de ver um artista plástico contribuindo em uma nova área de forma construtiva, respeitando as necessidades da história e do formato de cinema. Também é a melhor forma que a psicologia se manifesta na narrativa, o tipo de imagem que se encontraria num filme de Luis Buñuel ou David Lynch, só que numa obra de Hitchcock. São apenas dois minutos, suficientes para deixar sua marca em “Spellbound” com ilustrações do conteúdo onírico bizarro com significado oculto, as coisas que fazem rir e fazem o sonhador quebrar a cabeça tentando entender.
Assim, “Spellbound” tenta facilitar para o espectador ao traduzir o conteúdo desse sonho e de outros sintomas e comportamentos de um personagem, para não deixar tudo muito sugestivo ou ligando os pontos sem que uma ligação seja visível. É claro que, no fundo, tudo tem uma explicação. Nenhum comportamento, pensamento ou sintoma é gratuito, por mais que uma interpretação não se manifeste imediatamente. Deixar a interpretação completamente aberta não faz o estilo das histórias de Alfred Hitchcock nem serve função alguma na trama, diferente de outras obras surrealistas em que deixar uma parte ou várias delas com significado aberto acaba fazendo sentido dentro da narrativa incomum. Então a solução que se encontra é trazer personagens psicanalistas que sabem exatamente o que cada símbolo e atitude significam para ajudar a desvendar o mistério da identidade do impostor e o que aconteceu de fato.
É uma psicanálise mastigada para uma audiência que na época talvez não tivesse embasamento algum sobre o assunto, um raciocínio que mostra exatamente A indo até B e como finalmente se chega em Z. Mas não é de todo imbecil. Ao menos a simbologia é crível com os complexos do personagem, isto é, as imagens escolhidas fazem sentido como representantes do enigma psicológico. A questão dos sonhos poderia ter sido um pouco mais bem trabalhada, talvez de forma complementar em vez de sustentar a solução do mistério todo e ainda ter de surgir na hora certa, com a protagonista desvendando tudo para finalmente definir quem são os culpados e os inocentes. O fato de Ingrid Bergman não convencer como psiquiatra usando um jaleco e óculos de grau também não ajuda, muito menos o fato de ela não ter uma química forte com seu parceiro, Gregory Peck. Ambos os lados profissional e amoroso se prejudicam.
“Spellbound” sofre um pouco com isso sem se deixar abalar profundamente porque a história como um todo é mais sólida, mais parecida com outras obras do diretor que se destacam por levar o espectador numa montanha-russa de mistério e tensão pelo destino de pessoas em apuros. O clímax é um representante perfeito de como o roteiro tem seus truques inteligentes ao levar o espectador a pensar que tudo está se resolvendo fácil demais, que o filme seria um tanto mais pobre se acabasse daquele jeito. Então uma grande reviravolta acontece e descarta muitos dos esforços nos quais se gastou tanto tempo. Longe de ser uma obra falha ou descartável do Mestre do Suspense, “Spellbound” acaba sendo marcante por motivos pontuais em vez do todo ser o grande atrativo.