Todo mundo fala de “O Poço”. Ou talvez não mais. As grandes novidades do Netflix vêm e vão mais rápido do que se pode acompanhar e mais cedo do que tarde há uma coisa nova pondo as pessoas para trabalhar, os entusiastas de cultura pop tentando explicar os finais até de “Frozen II” e os fãs debatendo e criando memes aos montes. Dessa vez cheguei atrasado no bonde e dei sorte de conseguir ficar de pé, quem dirá sentar-se à janela. Talvez nem teria visto se literalmente todos meus conhecidos não tivessem me perguntando se eu havia assistido. Menos meu pai, ele diz que filmes dão sono.
Goreng (Ivan Massagué) decide se inscrever em um programa que o coloca por alguns meses numa instalação gigante a fim de ganhar uma recompensa ao final do período. São dois detentos por andar, cada um com um objeto pessoal, centenas de andares e um grande vão no meio da sala onde uma plataforma passa todos os dias trazendo a única refeição do dia. Só há um problema: a comida é servida sempre do primeiro andar para baixo, descendo depois de dois minutos com um pouco menos de comida até não sobrar muito para os andares de baixo. Sem saber em que lugar vai acordar em seguida, a estadia logo se torna uma luta pela sobrevivência.
Sendo justo, dessa vez há bastante margem para interpretação e até mesmo um final aberto para colocar as pessoas na função de usar o Google e procurar pelo próximo canal de YouTube explicando tudo com mil piadinhas engraçadíssimas. Antes de entrar em méritos sobre “O Poço” ser bom ou não, é um filme inteligente. Fica bem claro o esforço de maquinar soluções para associar elementos narrativos e visuais à diversidade de conceitos da história, não só pensando na unidade de cada cena ou de cada objeto em relação ao seu conceito adjunto mas também colocando isso em coesão com o resto da trama. É aqui que se tem a clássica impressão de que há mais sob a superfície, algo que não estão contando, um significado por trás daquele cenário tão incomum que não poderia ter sido criado arbitrariamente. E de fato não é. Citar seqüencialmente cada um deles seria escrita fraca, o que não desejo e, no entanto, acabo criando ocasionalmente.
Assim, é válido começar analisando a estrutura central do enredo. Um prédio com centenas de andares onde uma pessoa divide espaço com outra e traz apenas um objeto pessoal. Ao fim de cada período, as pessoas trocam de andar e percebem que estão numa situação pior ou melhor dependendo se estão mais para cima ou para baixo. As de cima sempre tentam tirar vantagem do momento de sorte que têm enquanto as de baixo têm de apelar para métodos mais severos para sobreviver. Então é só ligar os pontos para perceber o que acontece numa terra de oportunistas. Pessoas morrem. E é isso. Contar mais sobre estragaria as surpresas e isso já é mais que o bastante para colocar as engrenagens da imaginação para funcionar e pensar que tudo pode ser uma grande alegoria para o capitalismo e o que ele faz com quem não percebe a dinâmica de que participam ou que percebem e são complacentes mesmo assim, abraçando o lado negro com uma sinistra vaidade. E qual a mensagem de “O Poço”? Seria uma apologia à distribuição de renda como solução para a desigualdade social? Ou apenas uma forma de dizer que os favorecidos não precisam ser babacas e pisar nos outros?
Há muito para ser dito e interpretado em “O Poço”. Uma cena ou parte específica do enredo pode simplesmente querer mostrar que o mundo dá voltas e cedo ou tarde e as pessoas compartilham dificuldades. Mais do que isso ou nada a ver com isso, dependendo do espectador. A obra regularmente esbanja riqueza de significados e aberturas para interpretação de formas construtivas para a grande história, elevando uma experiência que funciona por si e pode ser encarada mais ou menos de forma isolada. Pensar no que cada coisa significa e qual é a grande analogia certamente é divertido e um exercício interessante para durante e depois da experiência. Obrigatório? Não exatamente. Apenas o final praticamente grita para não ser encarado de forma literal, senão seria uma conclusão um tanto anticlimática para tudo que veio antes.
O final ser aberto é uma tentativa clara de mostrar como “O Poço” é essencialmente interpretativo. Ele não entrega nada nem define nada, deixa sem explicações explícitas sobre o destino dos personagens. E está tudo bem. É uma tarefa razoável tentar chegar no significado disso, mas e o resto? Há vários acertos e também alguns deslizes. Talvez a natureza abstrata na esfera semântica torne difícil definir o que é deslize de fato, porém não deixa de parecer que existem alguns buracos, que a lógica por trás da história é falha ou que a conta não fecha, usando um termo popular. Costumo ser a favor da idéia de que nem tudo precisa ser explicado ou ter um plano de fundo exposto. Exemplo disso é como ambos “Halloween” e “Spectre” tentam demais cobrir as bases e acabam perdendo a oportunidade de deixar as coisas como são, o vilão ter uma inclinação para o assassinato porque é isso que assassinos fazem. Aqui é um pouco diferente. Parece que a idéia do “porque sim” é usada por conveniência e nada mais. Realmente não era necessário explicar toda a dinâmica por trás da prisão, mas trazer coadjuvantes na hora mais urgente para dar propósito aos protagonistas e dizer que certas coisas são o que são e fim é desonesto.
Parece mais é que “O Poço” não conseguiu desenvolver bem todas as idéias que teve e adotou uma posição absoluta para não colocar o resto das analogias e o grande conceito em risco. Quanto mais perto do final, mais verdades, por assim dizer, são jogadas para a audiência, que passa a ter de aceitar algumas coisas como fatos porque a obra diz que deve ser assim. Tal personagem é a resposta. Certo. Resposta para quê? O que ele vai mudar, no final das contas? Com tantas idéias bem definidas como interpretáveis, outras pecam por não abrirem nenhuma brecha ou por estarem totalmente no escuro. Cheira a incompletude, medo de estragar a parte bem desenvolvida da história.