“The Beatles” é uma das minhas bandas preferidas de todos os tempos. Já devo ter escutados todos os discos pelo menos algumas centenas de vezes para poder decorar cada nota e flexão de voz e estranhar o volume mais alto das risadas no final de “Within You Without You” na mixagem de 2017. Talvez por esse apego saudosista eu tenha protelado tanto assistir a “Across the Universe”, com medo de que as reinterpretações das amadas canções estragassem de alguma forma seu legado. Ou talvez fosse o preconceito infeliz de sequer querer conferir tais versões alternativas e ficar apenas com o que o que é garantidamente bom. Uma chance eventualmente foi dada e o resultado, talvez sem surpresa, foi mediano, mas não pelas razões esperadas.
Em meio aos turbulentos Anos 60, Jude (Jim Sturgess) decide largar sua cidade natal de Liverpool, o trabalho que detesta, a mãe e até a namorada para ir até os Estados Unidos encontrar novos horizontes. Ele encontra isso e muito mais na companhia de Max Carrigan (Joe Anderson) e sua irmã Lucy (Evan Rachel Wood). Os três logo se encontram em Nova York no meio de uma verdadeira revolução de indulgências artísticas, prazeres redescobertos e mudanças radicais. Guerra, paz, luta, amor e Beatles.
Justo. Essa é uma combinação difícil de criticar no que diz respeito à matéria-prima de uma história. A década de 60 não é forte no cinema apenas por conta das produções realizadas nesse período mas também por tudo que veio depois e decidiu usar a época como plano de fundo. “Once Upon a Time in… Hollywood” é um dos mais recentes. Falho ou não, ele traz a época das flores nos cabelos nas placas de restaurantes da Sunset Boulevard, nos transeuntes cabeludos vagando pelas calçadas e nos carros trafegando lentamente enquanto procuravam uma nova aventura. Com isso em mente, por que “Across the Universe” não poderia funcionar usando a mesma época e todos os seus ingredientes? Porque não é dirigido por Quentin Tarantino é uma resposta e um ótimo começo, mas, novamente, não é como se problemas inexistissem em sua obra, rica como é sua recriação histórica.
Os focos narrativos, o enredo e a proposta geral de ambos são bastante diferentes. Não há como comparar diretamente, o que não impede que alguns paralelos sejam feitos para determinar em quais pontos se percebe o nível de sofisticação de cada obra falando de assuntos parecidos. “Across the Universe” tenta pegar a época pelos chifres. Os temas definidores daquele tempo são abordados diretamente, literalmente e explicitamente. Enquanto se pode fazer uma leitura do estado de turbulência social que criou demônios na forma de Charles Manson em “Once Upon a Time in… Hollywood”, por exemplo, a contraparte mostra um jovem indo para a guerra contra sua vontade e vivendo o clichê completo enquanto os Estados Unidos se revoltam contra sua própria guerra e outras coisas mais. O resultado do primeiro caso é uma assombração quase onipresente criando suspense a respeito do que pode acontecer; o do segundo é um jovem soldado esgotando um pente de rifle gritando “Morram, morram!!” no meio de um pântano no Vietnã.
A grande crítica, o grande paralelo histórico de “Across the Universe” é falar de guerra, música, drogas, arte, revolução, amor e aventura. Bons ingredientes que renderam e renderão vários filmes incríveis, mas que não fazem uma obra por si. O governo está errado porque ele corrompe a juventude e a envia para uma guerra do mal. O amor e a arte estão em todo o lugar e isso de alguma forma tem ligação com uso de drogas e viagens psicodélicas que começam em um apartamento e terminam num campo no interior de outro estado. As coisas estão bagunçadas e o povo deve se rebelar para mudar tudo radicalmente. Longe da abordagem mais original desses assuntos.
E isso é só o começo. O principal chamariz de “Across the Universe” é ser um musical usando só canções dos “Beatles”. Se alguns musicais às vezes deixam a desejar por não terem músicas marcantes, divertidas, marcantes ou apenas competentes, isso aparentemente não parece ser um problema quando as composições são as mesmas que fizeram o mundo amar uma tal banda de Liverpool. Era de se esperar que algumas das famosas aparecessem numa história de romance, principalmente as dos quatro primeiros álbuns e suas letras sobre viver apaixonado, porém também se faz espaço para os grandes trabalhos que vieram depois. É difícil escolher poucas músicas boas dos “Beatles”, realmente, então a solução aqui é colocar o máximo possível. São mais de trinta números musicais. Muitos. Talvez demais.
Uma coisa é rechear de referências e nomear praticamente todos os personagens por causa de uma canção específica. Outra é praticamente treinar o espectador a esperar a mínima fagulha de oportunidade se tornar uma canção. Em dado momento, a personagem mais inútil do filme, chamada Prudence, fica triste e se tranca no armário. E é claro que “Dear Prudence” toca: “Querida Prudence, não quer sair para brincar? Querida Prudence, saúde o novo dia”. O cúmulo da frustração proporcionada por “Across the Universe” é encontrar pobreza de roteiro e de direção juntas. As letras das músicas criam situações para a direção ilustrar palavra por palavra ou encher a tela de efeitos especiais e transformar a cena num videoclipe. Enquanto isso, a base de toda a trama, o chão de onde ela cresce, volta à questão dos temas históricos superficialmente apresentados.
Assistir a “Across the Universe” é quase como pescar dentro de um balde: cada sinal é quase sempre uma certeza, é soltar o anzol e esperar a fisgada mais freqüentemente do que não. Até mesmo para um musical, gênero em que costuma ser fácil identificar quando um número vai começar, o que se vê aqui passa dos limites e chega num patamar de zero surpresas. Até o final, que talvez era para ser uma homenagem dedicadíssima, tem quase zero impacto por parecer um truque barato como tantos outros vistos antes. Ao menos meu medo inicial de encontrar versões horríveis das músicas não se concretizou. Várias são boas e apenas a versão de “Being for the Benefit of Mr. Kite!” merece desprezo.