Fred Rogers foi um garoto com sobrepeso e dificuldade de fazer amizades que buscou alternativas para sua situação. Fantoches, amigos imaginários, cenários complexos de faz-de-conta e fantasias intermináveis. O que poderia ser coisa de criança em qualquer outro caso, uma fase, tornou-se algo bem maior para Rogers, que levou suas experiências e compaixão pelas dificuldades da infância mais longe quando criou o “Mister Roger’s Neighborhood”, um programa infantil que durou 33 anos. “Won’t You Be My Neighbor?” conta a história das conquistas de um homem se tornou uma das pessoas mais queridas do país e uma referência louvável de bondade.
“Won’t You Be My Neighbor?” é meio difícil para audiências estrangeiras. É como o filme sobre o Bozo, “Bingo: O Rei das Manhãs”, ser inscrito na competição para Melhor Filme Estrangeiro em 2018. O personagem é um ícone do Brasil e embora a versão original do palhaço tenha origem americana, a história é centrada no ator brasileiro. Talvez um paralelo melhor seja o filme de Hebe Camargo, que teve uma carreira de mais de 40 anos na TV. Mesmo se ela fosse a mais importante e influente, o resto do mundo poderia nunca ter visto um episódio sequer de seu programa. O interesse inicial simplesmente não é o mesmo porque não há uma importância assumida. Felizmente para quem decidir dar uma chance a despeito disso, há aqui um documentário a ser descoberto sobre um ser humano belo.
Pensando agora, é mais ou menos isso que a maioria das biografias produzidas em época de Oscar fazem: contam a história de alguém importante, mesmo que não necessariamente famoso; no mínimo, vão mais a fundo do que o senso comum. Mas há casos e casos e este não parece apelativo ou comerciável. Até por ser um documentário, há menos margem para produções lustrosas e papéis para atores brilharem em suas encarnações. Os comentários amplamente positivos continuaram surgindo sobre “Won’t You Be My Neighbor?” e isso — além de ter sido um dos primeiros screeners que recebi — despertou meu interesse, mas por algum motivo acabei postergando a assistida até agora. Foi só com a indicação de Tom Hanks para o Oscar 2020 que restaurei esse interesse, em parte para ter algum parâmetro para julgar sua interpretação. Talvez não seja o motivo mais puro, mas aqui estamos com o filme visto.
Caminhos errados levando para o lugar certo? Não importa muito quando o resultado é o mesmo. “Won’t You Be My Neighbor?” é uma recompensa que chega a me fazer esquecer todos estes detalhes possivelmente irrelevantes para o leitor que procura aqui um texto de opinião. Se for de algum valor, todos isso a respeito de popularidade internacional, retrato biográfico, ser um documentário e agora ter uma produção companheira com “A Beautiful Day in the Neighborhood” não devem se colocar no caminho de forma alguma. Este é um documentário mais que apenas informativo, expositivo ou narrativo. Ele seria incompleto se apoiando exclusivamente em um desses pilares. Ou um apanhado de informações sobre as décadas de trabalho e as conquistas de Fred Rogers como apresentador de programa infantil; ou uma coletânea de imagens de seus programas, depoimentos diante do senado e entrevistas com seus conhecidos; ou um relato cronológico partindo da infância até seus últimos anos de trabalho. A superficialidade das abordagens separadas esvanece quando as três unem o melhor que têm a oferecer.
“Won’t You Be My Neighbor?” apresenta tudo isso em mais do que a mera união das partes em um todo. Para quem não conhece absolutamente nada do trabalho de Rogers, é possível compreender exatamente como funcionava, da tomada inicial com ele entrando pela porta, vestindo o suéter e trocando os sapatos por tênis, até segmentos específicos do programa como os fantoches, os coadjuvantes recorrentes e os temas do programa. Há a informação sobre a vida pessoal dele antes, durante e depois de sua carreira, o tal plano de fundo biográfico. E, é claro, uma apresentação concisa de tudo que ele conseguiu conquistar nesses vários anos. Uma vitória perante o senado americano, por exemplo, permitiu que ele continuasse usando suas ferramentas lúdicas para conversar com as crianças do país inteiro, tocando em assuntos que muitas vezes as famílias não sabiam abordar e que com certeza a maioria dos programas infantis não se preocupava. Tudo isso é relevante na construção de um retrato complexo de um homem que poderia parecer tapado aos olhos ignorantes.
Eis a mágica de “Won’t You Be My Neighbor?”. Como pode um filme sobre uma pessoa até então relativamente desconhecida ser tão emocionante? É moda atualmente e provavelmente também era das gerações passadas dizer que o mundo está ficando cada vez mais louco, que as pessoas estão cada vez mais longe da virtude e da ética e que é tudo culpa de alguém, seja a Geração Y culpando os Baby Boomers e vice-versa. O mais próximo da verdade é que talvez sempre tenha existido esse espaço entre as pessoas que hoje se atribui à tecnologia, que as pessoas sempre tiveram alguma forma de manifestar suas neuroses usado o que estava disponível para si em seu tempo.
É por isso que Fred Rogers é tão grande. Enquanto há biografias de inventores e artistas expondo suas revoluções geniais, a história de um homem que fez seu pequeno trabalho com pequenas pessoas se exalta por sua simplicidade. Não de forma ou de conteúdo, mas de espírito, a mesma que sem esforço mostra quais tipos de valores fazem falta hoje tanto quanto faziam anos atrás. Emocionante é ver um homem ser popular e reconhecido por dizer as verdades mais simples, que deveriam ser parte do senso comum e ainda assim atingem onde é mais suave sem precisar de oratória rebuscada. Emocionante é ver que ainda existe decência e respeito afora, nem que seja na forma desta homenagem a alguém que se tornou popular por ser um homem bom.
A ironia de toda a situação é que “Won’t You Be My Neighbor?”, sendo um excelente documentário sobre uma figura imensamente popular da televisão americana, sequer tenha sido indicado para o Oscar. Mas tudo bem, talvez os concorrentes tenham merecido mais a atenção da Academia por abordar assuntos mais tocantes como montanhismo, vida de negros numa cidade pequena, amizades unidas pelo skate, política na Síria e a vida de uma mulher da Suprema Corte americana. Então vem 2019 com um filme de ficção sobre o mesmo Mister Rogers interpretado por Tom Hanks. E com isso uma indicação ao Oscar para sua atuação. Até parece piada, porém sem tanta graça porque é claro que Hollywood corrigiria seu próprio suposto erro a tempo de não deixar o assunto esfriar.