Pedro Almodóvar não é mais um dos cineastas com quem tenho uma dívida por nunca assistir um filme dele. “Dor e Glória” já é o terceiro da lista e ainda assim parece pouco, como se ainda houvesse mais a ser encontrado no resto de seu trabalho. Seu longa-metragem antes deste é “Julieta“, a junção de um tema rico trabalhado de forma simplista a ponto de nunca se atingir o potencial de uma história sobre cicatrizes e feridas de um passado em família. Não foi uma grande primeira impressão, mas foi o bastante para despertar o interesse pelo resto do repertório porque acertava nos lugares certos, sinalizando que o artista tinha algo a dizer mesmo nem sempre sabendo como dizer.
Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um diretor e roteirista de cinema que viu melhores dias no passado. Seus grandes filmes são material histórico para as novas audiências, que há tempos não vêem nada seu. Nem mesmo seus amigos ou sua empregada o vêem muito, já que ele fica em casa dentro do quarto sem falar com ninguém por dias a fio. Mas quando um de seus filmes é escolhido para ser exibido na cinemateca de Madri, Salvador retoma contato com o ator principal da obra e tenta remendar antigas feridas enquanto relembra pedaços esquecidos de sua infância.
Se o topete espetado de Antonio Banderas e a profissão de seu personagem parecem sugestivos, não é apenas coincidência, pois “Dor e Glória” tem alguns paralelos identificáveis com a história de vida de seu diretor Pedro Almodóvar. Quanto à carreira, não é como se ela estivesse empacada ou inexistente nos últimos anos, pois “Julieta” foi lançado três anos antes e um de seus maiores sucessos não está muito longe, “A Pele que Habito” de 2011. Mas talvez seja um sentimento do diretor para com sua carreira. A passagem de tempo é subjetiva e quem sabe quantas eternidades cabem em três ou oito anos. Pode ser que ele sinta que seu trabalho já não é mais o que foi. Ademais, a narrativa sobre a infância do protagonista envolvendo uma cidadezinha rural, escola em um internato religioso e algo envolvendo ler e escrever cartas para vizinhos analfabetos se aproxima do que o diretor viveu.
De que tudo isso importa? A princípio é material de curiosidade para saciar a sede daqueles que gostam de saber o máximo possível sobre a vida de seus ídolos. Uma segunda hipótese é o valor íntimo e sentimental do artista transmitido pela obra. A história pessoal pode mesmo ser a fonte do poder da narrativa. Ou não. Importa pouco, na verdade, apenas se busca uma conexão porque a narrativa evoca as sensações inconfundíveis de um material fidedignamente humano. É em filmes como “Dor e Glória” que a verdade objetiva perde relevância em prol de uma verdade subjetiva porque pouco importa quão próximo da vida de Almodóvar o longa está, é mais importante sentir que a construção dos eventos, seja lá como isso for, emana as vibrações de uma inspiração ancorada em sentimentos verdadeiros.
Isso não se nota em detalhes como o cabelo espetado do ator principal ou em sua profissão. É através da interpretação que se pode dizer que a história de “Dor e Glória” ganha vida. E não é porque 2020 foi o ano em que o Oscar decidiu amar o cinema estrangeiro, é porque este último realmente fez um esforço a mais para ser amado neste ano, com Antonio Banderas se colocando entre outros quatro indicados por produções americanas. Seu trabalho se diferencia bastante daquilo que se imagina quando seu nome é mencionado, obviamente passando longe de Zorro mas também do médico austero de “A Pele que Habito“. Tendendo para metade do título, dor define a performance como o elemento definitivo e norteador da vida do personagem.
Viver é sofrer, alguns dizem. Talvez seja mais verdade para alguns do que para outros e, não obstante, sofrimento pode assumir várias formas. Seja uma dor física ou psicológica, ela está ali. Uma soma de nossas experiências, o valor atribuído a elas e suas conseqüências moldando uma parte considerável do caráter humano. Como se vê em “Dor e Glória”, o protagonista arrasta muita bagagem atrás de si mal aguentando o peso delas, tendo ainda menos inclinação de adicionar outras conforme sua idade avança. A experiência se eleva no perceptível cansaço de permanecer vivo dos pequenos gestos, dos atos mais irrelevantes em uma história que dificilmente se centra nas pequenices. Há muito mais a ser encontrado aqui, uma vida inteira de dores e algumas glórias na expressão cansada de Antonio Banderas sem uma explicação para cada coisa.
Algumas são disponibilizadas. Almodóvar encontra formas diferenciadas de as expor, ou melhor, consegue se safar expondo muito sobre seu personagem em pouco tempo evitando ser acusado de direção pobre. Como ele faz isso? Simples. É a mesma coisa que um documentário de televisão ou um vídeo de internet faria na falta de material ilustrativo, só que com um toque estético como realce. Fatos sobre o protagonista e os muitos anos entre os dois períodos mostrados, infância e meia idade, são narradas cruamente enquanto imagens computadorizadas em 3D, coloridas, rodopiantes e quase psicodélicas, ocupam a tela e ilustram as palavras mais ou menos de forma literal. É claro, seria um problema se Banderas não trouxesse consigo os reflexos dessas informações no resto do tempo. O que se acaba vendo é um complemento, uma explicação para que o sofrimento tenha algum tipo de esclarecimento extra.
“Dor e Glória” mostra que a confiança depositada no cineasta depois de assistir a “Julieta” não foi mal colocada. Os mesmos erros não se repetem enquanto o âmago que foi tão atraente antes retorna com o mesmo brilho, temas envolvendo família e relações fragilizadas pelo tempo e as escolhas tomadas que às vezes separam em vez de unir. Dessa vez as atuações não estão sozinhas e são acompanhadas por um roteiro que não simplifica mistérios dificilmente explicáveis, usando novamente duas linhas temporais para um efeito ainda mais forte e surpreendente por conferir ao final uma surpresa de última hora, evitando uma conclusão morna de um filme que morreria quieto.