Divórcios podem ser um saco. “Marriage Story” abraça o assunto a fim de demonstrar todas as formas que ele afeta as vidas dos envolvidos. Sendo um assunto que atinge muitos de muitas formas, há material de sobra para escrever um filme — ou vários — sem parecer que se está estendendo um assunto banal para muito além de seu potencial razoável. E parando para pensar, ainda é a história mais simples de se contar por mas complexo que o assunto seja: são duas pessoas vivendo suas vidas até o ponto que não dá mais certo. É comum o bastante. Dois bons atores, um bom roteiro e uma direção que trabalha ambos em função do outro organicamente.
Charlie Barber (Adam Driver) goza de uma carreira bem-sucedida no cenário de teatro em Nova York. Ainda é uma vida difícil de altos e baixos sem a estabilidade que seria o sonho de todo artista, mas as coisas têm funcionado bem melhor do que no passado e só tem a melhorar por conta do Prêmio MacArthur concedido recentemente. Nicole (Scarlett Johansson) é sua esposa e maior colaboradora, o orgulho de toda a companhia por suas excelentes performances protagonizando as peças de Charlie. No entanto, as coisas não vão tão bem em casa. O casal passa por problemas e aparentemente não há solução. Separação parece a coisa mais lógica a se fazer pela infelicidade ser dominante. Eles tentam fazer de um jeito fácil e tão amigável quanto possível. Nunca é tão simples.
Bem, não parece grande coisa e realmente não é. Em termos de escala, ao menos. São problemas comuns de uma situação mais ou menos comum, exceto pela profissão dos envolvidos diferenciando um pouco porque, afinal, o mundo não é feito de atrizes e diretores de teatro. E isso é apenas um detalhe, uma caracterização fornecendo contexto para alguns dos problemas enfrentados. A real questão da história é o que acontece entre o casal e como eles chegaram no ponto de ruptura. Como poderia algo dar errado? Eles se conheceram e se apaixonaram rapidamente pelo mais nobre dos motivos: admiração verdadeira. Não por beleza, não por apelo sexual, não por luxúria e muito menos por oportunismo. Os interesses profissionais se alinham perfeitamente, ambos vivem de e pela arte, além de amar o que fazem. Ainda há um filho entre eles, a consumação de um sentimento nutrido há tempos. Tudo aponta para as melhores perspectivas e, novamente, nunca é tão simples assim.
“Marriage Story” é descomplicado. Até tosco quando se descreve o processo demais, como um relacionamento dá errado e quais situações o roteiro empresta para mostrar isso. Brigas? Sim. Ofensas no calor do momento? Sim. Arrependimento logo na sequência? Sim. Choro? Certamente. Não há nada impressionante colocando falando dessa forma, pois até mesmo uma atriz no pior dos melodramas consegue chorar em alguma cena para tentar manipular a emoção do espectador. Comportamento sem contexto, construção prévia e desenvolvimento são tão ruins quanto a presença desses elementos sem uma execução adequada. O lado bom é que “Marriage Story” não carece de nenhum desses elementos e consegue sustentar as demandas emocionais e lógicas de sua história uniformemente. Nunca se cai demais no lado racional, relacionado aos argumentos e às ponderações sobre quem tem razão, nem no outro lado, de demonstrações explosivas recorrentes comparáveis à cenas de ação sem pausa.
A qualidade mais adequada, e também a definitiva, da obra é o respeito pelo conflito em toda sua magnitude. Vale lembrar que toda história é diferente e que nem sempre precisa chegar tão longe quanto aqui. De qualquer forma, “Marriage Story” propõe uma abordagem relativamente cinematográfica sem chegar a exagerar na escalação do conflito a ponto de a gravidade chamar a atenção para si. Ou seja, explora-se a dimensão básica envolvendo o casal e muito mais. Scarlett Johansson e Adam Driver são escalados como as forças conflitantes, reconciliantes e sofrentes. Não se trata apenas de dizer que a interpretação dela ou dele são boas por este e aquele motivo porque este é um caso diferenciado. Um não funciona sem o outro, a dita comunhão entre atores deve tomar a frente especialmente nas situações entre o casal, afinal as cenas mais importantes ainda são entre eles, a despeito de todos os lugares aonde a trama vai.
A sogra pode ser um problema, o filho pode ser um grande problema e dinheiro é sempre um problema. Mesmo assim, não há nada como os momentos tensos entre um casal para definir o futuro — ou a falta dele — numa relação. E nem todos os momentos são tensos de forma negativa. É normal que haja algum resquício de atração, de uma tensão sexual ao longo de uma separação, por exemplo. Dificilmente um envolvimento termina porque a atração morre ou a atração morre imediatamente porque o envolvimento termina. Sentimentos conflitantes são uma realidade. Então eis o desafio: se interpretar uma emoção apenas fidedignamente costuma ser difícil o bastante, interpretar o recipiente de um turbilhão delas sem dúvida é uma tarefa e tanto. A história de “Marriage Story” realmente vem à vida não só nas brigas mas também em outros momentos de sensibilidade artística encaixando nas rotinas bobas o peso acumulado. Atritos causando uma fenda psicológica que se abre continuamente e começa a esparramar o conteúdo indiscriminadamente. Ambos os atores acertam em cheio nessa marca, possuem a química necessária para um bom filme de romance acontecer, o que vale para tanto para uma separação como para uma união.
A existência de um pilar principal não exclui toda a situação que se constrói ao redor. Como dito, “Marriage Story” se propõe a um escopo grande para além dos envolvidos diretos, considerando até mesmo a criança no meio. Aliás, ela é a catalisadora de muitos dos problemas adjuntos porque tudo se complica quando há filhos envolvidos. Já não é mais como decidir que quer terminar o relacionamento e fim. Poderia ser a oportunidade de estragar suas conquistas por meio de uma desatenção com os coadjuvantes, de ser como “Still Alice” e seu foco exclusivo na protagonista em detrimento do resto. E seria uma pena, pois assim não haveria nada para ser apreciado nos personagens de Ray Liotta e Laura Dern, os advogados que eventualmente se envolvem no caso, além de todas as ótimas cenas envolvendo a família de Nicole. Aparentemente, tudo está no lugar. A única crítica a “Marriage Story” é sobre seu ritmo, que pode por vezes se mostrar um tanto monótono, com a história sempre trazendo longas sequências de intensidade similar. Provavelmente deixa o filme mais cansativo para os menos dispostos.