Já é batido falar sobre o Oscar e as freqüentes indicações, muitas vezes vitórias, de filmes biográficos. Enquanto os Anos 70 trouxeram a insanidade jocosa de “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” e duas partes da história da família Corleone, além de clássicos como “Rocky” e “Annie Hall“, a próxima década começou uma tendência que permanece até hoje com o mais recente vencedor “Green Book“. “Chariots of Fire” conta a inspiradora história real de atletas de propósito e virtude, então veio todo o resto: “Gandhi”, “Amadeus”, “Out of Africa”, “The Last Emperor”… Filmes do tipo ainda podem ser vistos porque deu muito certo e se tornou um clichê. E não sou eu que vou tirar razão disso por nada, os resultados costumam ser bons.
A história de Gandhi não poderia ficar de fora, certamente. Considerado uma das maiores figuras político-religiosas de todos os tempos, um dos maiores responsáveis pela independência da Índia e sua instituição como Estado Soberano, o homem goza de popularidade a nível de senso comum de conhecimento. Seu rosto e importância são conhecidos amplamente. E os detalhes? Há quem saiba apenas o mais superficial, talvez até fatos aleatórios como seu personagem na série de jogos Civilization possuir uma curiosa agressividade ligada a bombas nucleares, o que não faz sentido algum porque ele era — novamente — um dos mais notórios pacifistas do mundo. O velhinho calvo, franzino, grisalho, de óculos redondos e túnicas brancas é sempre o primeiro pensamento, mas e o resto? O que existe em torno dessa imagem clássica?
Era para ser um dia normal na vida de Mohandas Karamchand Gandhi (Ben Kingsley), viajando de trem para a África do Sul sem ter idéia do crime que estava cometendo ao viajar de primeira classe sendo uma pessoa de cor. Ao descobrir da forma difícil a política regente do país, ele passa a dedicar sua vida ao ativismo em prol da mudança da legislação por justiça para a população indiana. Esse é o começo de uma jornada de mais de 50 anos de um jovem advogado formado em Londres que se tornaria pai de uma nação inteira.
“Gandhi” é um filme relativamente direto ao ponto, é o que se espera de uma biografia e até tem o formato popular de começar com um evento avançado da cronologia fora de contexto que depois volta e conta a história desde o começo. É mais ou menos como o filme de suspense que começa com um assassinato e depois revela quem morreu, quem matou e por que isso era importante. Sem muita inovação na parte narrativa, resta depender do sucesso na execução tradicional de uma trama sobre a ascensão e feitos importantes de seu protagonista. E isso não é motivo para preocupação aqui, já que se encontram razões suficientes para perceber que essa não é apenas uma produção qualquer feita para arrecadar em cima da promessa financeira do sujeito central. A duração de 191 minutos é o primeiro sinal de algo diferente, de ambição e nível de detalhe maior que a maior parte das biografias costumam demonstrar.
Claro, não se pode considerar isso como um fator determinante de qualidade ou mesmo do mencionado nível de detalhe, afinal filmes longos foram feitos sem se gabar de bom gosto e conteúdo. “Gandhi” traz um ótimo exemplo de como transpor a vida e grandes feitos de um indivíduo sem se deixar cair na economia excessiva nem no detalhismo desorientado; o primeiro soando artificial por ser uma coletânea de grandes momentos e o outro uma maratona aporrinhante de fatos irrelevantes para a trama principal. As mais de três horas são preenchidas com eventos que despertam o interesse do espectador por não esconderem sua importância, além de construírem a grande imagem que se espera de uma biografia chamada “Gandhi” com 3h11. Não pecando em nenhum dos dois extremos, o filme traz detalhe em um nível que soa até respeitoso, algo que dificilmente se pode dizer de uma produção hollywoodiana comum. É frequente que polêmica surja com obras desse tipo, com gente contestando fatos para cá e criticando representações para lá. Tal despreocupação em se estender demonstra como às vezes a história de verdade está nos grandes significados de pequenos eventos ou nos pequenos gestos perdidos em grandes momentos.
Mais do que isso, tal progressão em nível menor faz toda a diferença para fazer a transformação do indivíduo ser tão natural quanto pode, essencial para uma história tão dependente dea forma como as atitudes passam a definir caráter e personalidade. Ambos os grandes atos, como afrontar as autoridades e ser preso em outro país por lutar pelos direitos do povo, e os pequenos, como uma conversa íntima entre marido e mulher, servem para ilustrar como algumas coisas mudaram e outras apenas germinaram de uma semente que já existia desde sempre. Interpretar alguém como Gandhi, Jesus Cristo ou outra figura de natureza impecável necessita mais do que fidedignidade na caracterização física, na reprodução de trejeitos, atitudes e discursos, essas são pessoas que possuem uma aura de elevação espiritual, bastando olhar para elas para saber que são diferenciadas. Se não isso, então as mínimas atitudes já indicam tal singularidade sem que seja necessária uma atitude expositiva demonstrando isso explicitamente. Bondade não necessariamente precisa de uma cena envolvendo trabalho voluntário com gente passando fome.
Isso não quer dizer que não existam cenas assim, mesmo sendo o próprio Gandhi a fazer greve de fome em prol de mudanças sociopolíticas. O real diferencial da narrativa e o maior responsável pelo sucesso do filme é a capacidade de Ben Kingsley de usar as oportunidades fornecidas pelo roteiro para construir pouco a pouco a transformação de Mohandas Gandhi em Mahatma Gandhi. É impressionante a naturalidade de como uma idéia leva a uma proposta e depois a uma atitude e eventualmente a uma conseqüência; mal se pode dizer que, sim, neste exato ponto a pessoa do começo do filme se transformou naquela do imaginário popular, que algo clicou e a mudança aconteceu. As coisas simplesmente acontecem e quando se percebe nada é mais o mesmo. Tudo muda e, embora o começo seja muito diferente do fim, permanece a certeza de que ambos são etapas de um mesmo grande processo. Ao contrário de tantas obras que querem entulhar conteúdo em pouco tempo, a vagarosidade demonstrada aqui é aproveitada para dar a atenção devida a cada momento, pequeno ou grande.