“My Darling Clementine” é considerado um dos melhores faroestes de todos os tempos. É também o que eu chamaria de clássico superestimado. Foi até surpreendente ver o tamanho de sua reputação e os elogios pomposos, com a maioria falando que é uma das maiores conquistas da carreira de John Ford e alguns famosos apontando como seu faroeste favorito. Sendo justo, não é um completo absurdo tudo isso porque o filme não é ruim e tem qualidades, algumas das quais vistas também em outros trabalhos melhores de Ford. Só não há como ignorar a falta de foco narrativo tornando uma história relativamente simples em algo desnecessariamente complicado.
Wyatt Earp (Henry Fonda) e seus irmãos transportam gado pelas planícies tentando chegar até a Califórnia. Parando para descansar perto da cidade de Tombstone, parte do grupo decide fazer uma visita breve antes de retomar a viagem, mas voltam para descobrir que o gado todo foi roubado e que o irmão que cuidava deles foi morto com um tiro nas costas. Wyatt decide ficar na cidade e assumir o posto de xerife para descobrir os responsáveis e acertar as contas. Logo ele cruza caminho com o figurão da cidade, Doc Holliday (Victor Mature) e aprende um pouco mais sobre as regras não escritas da cidade, além de encontrar um possível aliado no homem.
A primeira coisa que pode incomodar alguns espectadores é a discrepância da versão dos fatos apresentada com a realidade. O verdadeiro tiroteio no Curral O.K. foi um tanto menos dramático, durando apenas 30 segundos e um pré-conflito burocrático envolvendo acusações criminais e embrulhos desinteressantes. Mas tudo bem, a proposta não é ser um documentário e a situação toda praticamente pede por uma romantização, é a oportunidade perfeita para criar um grande evento a partir de um originalmente apenas incomum. Certamente esse não foi o único tiroteio de toda a história do Velho Oeste; ganhou muita fama por conta das pessoas envolvidas e a mitologia criada ao redor delas. Hoje em dia os nomes Wyatt Earp e Doc Holliday têm fama construída com biografias não muito modestas e fidedignas, recheadas de engrandecimentos dos atos e figuras. Se “My Darling Clementine” for levado literalmente, é um exemplo perfeito da construção do mito.
As críticas a “My Darling Clementine” não recaem sobre a fidelidade. Essa não é uma análise histórica e nem pretende ser, até porque não existe problema em manipular alguns fatos em função de uma reorganização dramática dos eventos — “Inglorious Basterds” e “Once Upon a Time in… Hollywood” são dois exemplos recentes disso. A narrativa, tal como se apresenta, é inconstante em manter uma linha de interesse usando várias subtramas para isso. O próprio nome do filme é um representante perfeito para a desorganização narrativa. Clementine (Cathy Downs) é uma coadjuvante que demora para entrar em cena, pouco faz e seria pouco mais que uma nota de rodapé se não existisse o título para sugerir importância. Todo seu arco é apenas um complemento menor do arco de Doc Holliday, que também é um tanto decepcionante. Existem vários focos e apenas alguns deles se sustentam por conta, boa parte do resto apenas parece gratuita, inserida para agregar conteúdo sem chegar a lugar algum.
A trama principal de “My Darling Clementine” envolve o roubo do gado dos Earp, o assassinato do irmão mais jovem e a busca de vingança da família quando eles assumem a posição de homens da lei para investigar e fazer justiça com o poder que detêm. Assim como acontece na história real, é essa corrente de eventos que instiga os Earp a ficar na cidade e eventualmente se escala até resultar no famoso tiroteio. Sendo a base para todo o resto das ramificações, é de se comemorar que pelo menos este elemento seja o mais sólido do roteiro. O próprio Doc Holliday, um dos personagens principais de toda essa história, também tem uma participação de impacto questionável por não ter um papel sólido, resumido apenas à tragédia. Não chega a ser brando como o caso de Clementine, apenas aquém de seu potencial. O lado interessante da interpretação de Victor Mature é a criação de uma figura complexa e de função nubilosa por um bom tempo. Não se sabe se ele é um inimigo ou aliado ou um egoísta buscando apenas seu próprio benefício. E qual esse benefício? Cria-se um personagem cativante por conta do mistério lhe envolvendo, que, enfim, acaba por ter uma conclusão pouco satisfatória em relação ao que se construiu antes.
Quanto à execução técnica, não se pode criticar John Ford por fazer o que faz de melhor. A história pode até pecar por perder o norte e retomá-lo apenas a tempo do final, ao passo que a representação visual é uma coletânea de imagens icônicas como aquela de Henry Fonda inclinando na cadeira e apoiando o pé na coluna de madeira. Não é à toa que o quadro foi escolhido como a imagem de capa da edição da Criterion Collection. Ela é funcional, além de artisticamente atraente, por ilustrar a imagem do personagem parte imponente, parte despreparada para a função que ocupa, além de fornecer uma moldura dentro do quadro para outros elementos de fundo. “My Darling Clementine” é feito de vários momentos como esse, câmera parada com a mise-en-scène se reorganizando através do movimento em cena.
Mas mesmo essa conquista não ergue a obra ao topo sozinha. Talvez por limitações técnicas da época, talvez por problemas na restauração, talvez por decisões artísticas, a fotografia por vezes desvia a atenção para qualidades negativas. Nem de longe diria que “My Darling Clementine” é um dos filmes em preto e branco mais bonitos, pois peca principalmente nas cenas à noite e em outras parece exagerar no contraste, pecando principalmente na diferenciação de tons de cinza. Não atrapalha a compreensão do conteúdo, apenas é de mau gosto estético. Problemas como esse impedem que o melhor da obra, evidente em alguns aspectos, seja sobressalente e faça o espectador enxergar o mesmo faroeste incrível que tantos aparentemente viram.