William Wyler é melhor do que o crédito dado a ele. Li uma discussão a respeito disso há pouco tempo, com o criador do tópico levantando a questão de ele não ser muito lembrado quando se fala nos maiores diretores de todos os tempos. Hitchcock é mencionado, Kubrick e Scorsese também, enquanto Wyler só aparece quando falam de “Ben-Hur”, como se este fosse seu único trabalho. Talvez tenha sido o mais ambicioso, o mais caro e o mais popular, porém definitivamente não representa sozinho o trabalho do homem. “The Little Foxes” é um senhor lembrete da riqueza e do valor de sua filmografia, além de ser a última e talvez mais frutífera parceria com a grande Bette Davis.
Os Hubbard são conhecidos na cidade toda, virando rostos por onde passam por um motivo ou por outro, a maioria destes relacionada a sua peculiar reputação construída ao longo dos anos. Três irmãos encabeçam os negócios da família: Ben (Charles Dingle), Oscar (Carl Benton Reid) e Regina (Bette Davis). Seu mais novo plano é fazer negócio com um empresário do norte do país e trazer seu maquinário para o sul, onde se encontram as plantações de algodão. Eles precisam de um grande investimento e só têm uma parte dele, com o resto dependendo de Regina convencer seu marido Horace (Herbert Marshall) a entrar no acordo.
Mais uma história que se beneficia da desinformação do espectador, “The Little Foxes” recompensa aquele que assiste sabendo o mínimo possível, talvez nada sobre a premissa. Provavelmente pensando nisso, o escritor da sinopse no IMDb a deixou breve e sem detalhes. O espaço em branco inicial é preenchido gradual e estrategicamente; primeiro com os eventos básicos envolvendo o objetivo primário dos personagens. Eles buscam expandir seu patrimônio ainda mais através de uma parceria com um grande empreendedor, mas precisam um do outro para juntar o dinheiro do investimento inicial. As partes de Ben e Oscar já estão prontas enquanto a de Regina demora mais do que eles gostariam, o que os faz temer por alguma tramóia da parte dela. Há motivos para a falta da parte dela, seja algo pessoal ou pelo seu marido. Assim, duas outras perguntas surgem a partir de objetivos iniciais não dos mais interessantes.
“The Little Foxes” não é um filme sobre empreendimentos de algodão do começo do Século XX. Há muito mais para ser visto e apreciado, sendo este detalhe apenas uma contextualização, um evento catalisador de todo o resto das intrigas familiares dos Hubbard reveladas conforme o acordo progride. É como vários dos chamados “road movies”: importa mais os eventos que acontecem durante a viagem do que ela em si. Perguntas vão surgindo e sendo respondidas na seqüência. Logo se descobre qual a reputação dos Hubbard na cidade, o que pensam deles aqueles que os conhecem apenas de vista e aqueles que conviveram de perto. Quem é Regina Hubbard e o que ela tem para esconder? O que há por trás da negociação além do dinheiro? Relações e valores são descobertos organicamente, sem nunca parecer que as cenas tentam transmitir alguma impressão forçadamente, manipulando a opinião do espectador sobre algum personagem ou situação.
O processo é cadenciado de forma que a ignorância inicial a respeito de tudo se transforme em dúvida sobre informação dada sem contexto, uma atitude fora do comum que chama a atenção. Pessoas normalmente não fazem isso e, no entanto, parece ser normal naquele ambiente. Conforme os comportamentos se repetem, suspeitas nascem a respeito das intenções e da índole dos envolvidos. Quando a verdade enfim se apresenta, não é completamente do nada nem previsível. “The Little Foxes” alcança o primor do drama ao surpreender com um evento já temido e antecipado, trazendo a confirmação que a audiência não exatamente desejava e não consegue evitar se impactar com ela.
A narrativa é apenas um dos méritos de “The Little Foxes”. O filme é regularmente lembrado não por William Wyler, como seria apropriado, mas pela presença de Bette Davis em mais uma de suas indicações ao Oscar de Melhor Atriz, a sexta de sua carreira. A vitória, todavia, foi de Joan Fontaine por “Suspicion”, o que marcou outra de uma série de indicações sem vitória que perduraria até 1962 com “Whatever Happened to Baby Jane?“. Em termos de merecimento, a performance de Davis poderia ter levado o prêmio sem risco de ser considerado injusto, pois tamanho prodígio não é daqueles que passa como apenas uma interpretação competente entre tantas outras boas no ano, compete diretamente com as mais sobressalentes e ainda se destaca por ser a primeira ou segunda melhor. Também não seria exagero dizer que é um destaque de carreira, um papel para ser lembrada, muito embora seja também um papel que ajudou a fazer a fama de outra atriz no teatro, Tallulah Bankhead. Existem comentários e comentários sobre o assunto, com alguns dizendo que Davis admitiu emular a atuação de Bankhead e outros que ela reinventou o papel para transformar a vítima em megera.
Sim, morre um pouco o brilho ao pensar que seria apenas uma cópia, mas algo me diz que não pode ter sido. Uma semelhança muito grande em uma produção tão proeminente jamais sobreviveria à imprensa da fofoca retalhando críticas. Seja lá qual for a verdade, o resultado é magnífico. Bette Davis é o avatar da arrogância e da vaidade em “The Little Foxes”, interpretando uma personagem que entre serpentes se destaca como a cobra-real do título brasileiro: “Pérfida”. Se existe algo comum entre pessoas ditas arrogantes é a qualidade do ar ao redor delas, um ar de superioridade acompanhando-os onde quer que vão. Pode ser verdade ou não, a pessoa pode de fato ser mais inteligente ou sagaz do que seus conterrâneos, mas é a pose que faz a diferença. Regina Hubbard já vive em luxo o bastante para que agir como rainha da casa seja uma verdade e, não obstante, ela se porta com a tranqüilidade de uma leoa em relação aos vermes da terra, quase sem reconhecer sua existência. É uma postura de excessos e de diminuição dos outros ao redor. Ela não ataca os outros dessa forma, apenas acredita que a ordem das coisas tem ela no topo e fim.
O melhor é que o desenvolvimento e exposição dessa persona andam em conjunto com algumas decisões críticas da Direção na questão de narrativa visual. Basta notar quantas vezes a personagem é mostrada subindo, descendo as escadas ou apenas enquadrada com ela em cena. O objeto é determinante da postura da personagem em relação ao mundo e Davis tira proveito de cada passo em cada degrau para esculpir um colosso de perfídia. “The Little Foxes” já seria bom só com isso e ainda conta com um resto de elenco impecável, com os atores da peça retornando aos papéis que claramente já dominavam, essenciais para construir o macro-universo da história para além do desenvolvimento de Regina. Enquanto ela resgata o desprezo que se direciona às pessoas que tratam os outros como menos, Herbert Marshall faz o oposto e desperta a vontade de ser um homem melhor, tão valoroso quanto ele. Cada vida exala a essência da individualidade do personagem, um mérito dificilmente alcançado e impossível de ignorar quando bem-sucedido como aqui.