“A Foreign Affair” traz o florescimento de jovialidade em meio à destruição. Depois da guerra, a Alemanha é comparável a um reduto de poeira, concreto e ruínas. Os Estados Unidos se instalaram no lugar para assegurar a reconstrução e reorganização do país, mas algumas coisas estão completamente fora de controle, tal como a prática do mercado negro e… soldados passando seu tempo correndo atrás das jovens e belas alemãs. O Capitão John Pringle (John Lund) encontrou a sua no clube Lorelei: Erika von Schlütlow (Marlene Dietrich), a cantora e principal atração das noites de Berlim. Rumores sobre as atividades dos soldados chegam aos ouvidos dos americanos, que enviam um comitê para avaliar a situação de perto. Phoebe Frost (Jean Arthur), uma integrante do congresso, encabeça a investigação e recruta a ajuda do Capitão Lund sem saber que ele está envolvido até o pescoço.
“A Foreign Affair” poderia ser chamado de Trümmerfilm por conta de sua ambientação. Esta é uma das obras que fazem o espectador lembrar da realidade brutal da guerra e suas conseqüências. É relativamente natural pensar em um filme de guerra e ver soldados entrando numa casa abandonada para conseguir um ponto de vantagem e um tiro melhor; ou um grupo de combatentes se esgueirando ao longo de uma parede detonada para flanquear um ninho de metralhadora situado num prédio no fim da rua. Também é comum esquecer que a pilha de escombros é uma cidade, não apenas um cenário de guerras comum como a planície das batalhas medievais e os castelos de filmes de terror. É mais que uma associação freqüente ou uma convenção de gênero, pois um dia a casa abandonada teve uma lareira acesa e um cachorro dormindo próximo para se manter aquecido enquanto seu dono lê o jornal na poltrona.
A diferença é que “A Foreign Affair” não trabalha diretamente a destruição da cidade e a reconstrução dela e da vida de seus moradores como tema principal, estudando o sofrimento e dificuldades da população de retomar a vida com apenas migalhas do que se teve antes, talvez menos que isso. Sim, este longa foi gravado majoritariamente na Berlim do pós-guerra, então a destruição e a evidente miséria de vários cenários é absolutamente real. É um fator a se levar em consideração pelo valor estético e cinemático, no mínimo, por fornecer um plano de fundo vivo, de complexidade ímpar e visto com pouca freqüência, além de conectado a temas explorados diretamente pelo enredo. O simples fato de ver o Portal de Brandemburgo como um ponto de mercado negro é ambos uma demonstração de riqueza de ambientação e uma forma de demonstrar as ilegalidades em que os militares participam.
Em dado momento, o protagonista troca objetos com mercadores para conseguir um colchão surrado, colocando-o em seu carro e levando para um apartamento ainda mais maltratado. Para quê? É lá que sua amante mora, num lugar com buracos nas portas e sofás com as molas saltando para fora do estofado. Sério e sóbrio podem ser adjetivos que vêm à mente, ambos comuns nas comédias de Billy Wilder. Sim, “A Foreign Affair” é uma comédia, por isso não se pode nem pensar em fazer uma associação séria com o movimento alemão do pós-guerra, o Trümmerfilm. O verdadeiro conflito não é entre o indivíduo e sua cretina realidade de conforto mínimo, mas entre o Capitão e a mulher que quer acabar com as aventuras dos soldados, inclusive a sua com a cantora do clube.
A tal mulher é interpretada por Jean Arthur. Correta e profissional em um nível beirando a chatice, ela procura a fundo um motivo para ter sido enviada de Washington até Berlim e se mostra muito mais disposta a encontrar tal razão que seus parceiros, que se contentam com os relatórios dados pelos militares de lá. A outra moça, a amante do protagonista, é a cantora por quem qualquer homem faria qualquer coisa para possuir, exala apelo sexual e sabe perfeitamente bem disso, até faz de propósito. Duas mulheres completamente diferentes e um homem preso entre elas, uma tendência para a comédia com um toque de romance e dá para imaginar onde isso vai parar. Mais ou menos. “A Foreign Affair” tem uns truques aqui e ali para fugir do óbvio.
Billy Wilder e Charles Brackett demonstram novamente sua conhecida qualidade de tornar idéias e conceitos simples em produtos muito mais interessantes que não deixam de soar simples quando recontados, mas com certa sofisticação. A história inteira de “A Foreign Affair” e seus conflitos principais não são novidade e dificilmente eram em seu tempo, mesmo sendo de 1948. É a presença de pequenos ajustes nas idéias conhecidas que tornam a experiência aproveitável como se fosse mais original do que é, a idéia de diversificar conflitos clássicos com uma gracinha inteligente e toques de comédia visual que apenas alguém extremamente competente na integração entre atores e cenário conseguiria extrair. Felizmente, Wilder é essa pessoa e não está sozinho em sua tarefa. Além de ter Brackett como parceiro de roteiro, conta com Marlene Dietrich e Jean Arthur preenchendo as posições de personagens essencialmente opostas para compensar uma relativa carência sentida no personagem de John Lund.
No geral, o roteiro traz a qualidade raramente vista da seriedade numa história de comédia e, sobretudo, uma boa trama fornecendo estrutura e uma espinha dorsal para todo o resto dos eventos. É por causa dela que seqüências longas, tal como a aventura da Senhorita Frost com dois soldados americanos que pensam que ela é alemã, fazem sentido e não são anedotas gratuitas. A única questão incômoda de “A Foreign Affair” é a mudança um tanto repentina de opinião do protagonista, além de um julgamento de valor moralmente simplista no final, que mais parece punir porque sim em vez de dar um bom motivo para isso.
Por fim, é curioso que a tradução brasileira para “A Foreign Affair” seja “A Mundana” em vez de “Um Caso Estrangeiro” ou algo do gênero. Tal escolha dá um destaque à personagem bitolada de Jean Arthur que não soa totalmente apropriado por conta da história tratar de mais do que ela. Mas tudo bem. Se o título brasileiro traz uma simplificação, isso só mostra como há muito mais do que apenas um romance, um cenário interessante, uma comédia e alguns toques de seriedade aqui. Aliás, há tudo isso e uma união de todos esses elementos em um todo que, embora menos brilhante que o melhor de Billy Wilder, não deixa de ser um filme bastante satisfatório.