Kiki finalmente chega nos seus 13 anos. Isso pode não significar nada para uma pessoa normal, mas ela é diferente. Assim como sua mãe, ela deve sair de casa para ficar um ano fora e realizar seu treinamento como bruxa para adquirir sua independência. A hora da partida bate à porta e a garotinha logo se vê cruzando as nuvens em busca de um lugar que ela possa chamar de casa e começar a colocar seus talentos em prática. Ela eventualmente encontra uma cidade bem maior do que seu vilarejo e tenta arranjar uma forma de se adaptar à dinâmica completamente nova enquanto a maturidade desperta dentro de si. Sua resposta é começar o Serviço de Entregas da Kiki.
Às vezes penso no que me motiva a escolher os filmes a que assisto. Claro, é comum haver respostas bem diretas e pouco românticas como uma cabine de imprensa na semana de lançamento de algo grande, uma exibição especial de um clássico, um festival de cinema ou o convite de outra pessoa. Por outro lado, acontece bastante de a escolha ser aparentemente baseada na intuição, isto é, numa sensação ativada quando passo os olhos por algo que julgo apropriado para assistir no momento em questão. E não se trata de meramente escolher uma obra para ver no futuro porque isso costuma acontecer na base da recomendação, refiro-me a ter opções em prontidão e decidir qual delas é mais apropriada.
Poderia dizer que é meramente uma questão de clima e de ânimo, se os ares estão mais para artes marciais e tiroteios ou para a complexidade da transformação de uma pessoa em crise. Este não é o ponto. É muito freqüente a decisão estar atrelada a uma maior significância, o conteúdo da obra se mostrar consoante com alguma situação pessoal minha antes mesmo de saber os detalhes da história. “O Serviço de Entregas da Kiki” é um ótimo exemplo disso por não ter despertado nenhuma impressão forte num primeiro momento exceto por ser do Estúdio Ghibli e dirigido por Hayao Miyazaki, de resto não havia nada na premissa de uma jovem bruxa trabalhando de entregadora que me parecesse muito atraente. Tal desinteresse inicial não se mostrou precursor de uma experiência branda.
Existem certos momentos na vida que exigem mudanças do indivíduo a fim de que ele se adapte ao novo contexto, em um nível mais simples, ou dê um passo à frente em seu desenvolvimento pessoal para conhecer pontos de vista até então incógnitos, falando em maior complexidade. É por isso que existem tantas histórias de amadurecimento — coming of age, em inglês: progredir é um movimento natural do ser humano, ainda que muitas vezes seja na direção errada e por conseqüência leve mais tempo para chegar na certa. Naturalmente, é ainda mais comum que este tipo de conto seja centrado na adolescência, a fase da vida em que transformações ocorrem o tempo todo e com intensidade. “O Serviço de Entregas da Kiki” se encaixa nesses moldes sem necessariamente ser um clichê sem graça com o diferencial de ser uma animação japonesa. Há o diferencial do bom gosto, no mínimo, e isso já vale muito.
Os ingredientes estão ali: é uma garotinha adolescente saindo de casa para viver o mundo por conta própria e amadurecer do jeito difícil, encarando a realidade. Simples? Sim, porém um conceito que pode ser executado de forma eficiente nas mãos certas. Estas serem de Hayao Miyazaki oferecem um pouco mais de tranqüilidade nesse quesito. Começa pelo simples, pela história novamente trazer elementos de fantasia implementados num universo relativamente normal com naturalidade. Por exemplo, ao invés de sentir que há pouca informação sobre bruxas e quem elas são, o que fazem, o que explica seus poderes e por que só algumas pessoas são, “O Serviço de Entregas da Kiki” transmite a segurança narrativa de não precisar explicar absolutamente tudo e tecer um enredo em que as coisas simplesmente são. Kiki voa pela cidade de vassoura e as pessoas até reagem com espanto, maravilha e surpresa, só não da mesma forma que aconteceria no mundo real. É como uma celebridade num lugar público: causaria um impacto sem ser algo fantástico porque, bem, celebridades existem por aí, ainda que não sejam vistas sempre.
E do simples se chega no mais complexo. “O Serviço de Entregas da Kiki” é estruturado sem complicações e ao mesmo tempo com certa elegância, uma narrativa desenvolvida de forma clássica através da criação e intensificação de conflitos até culminar num clímax. Falando dessa forma até parece um pouco sem graça por definir em poucas palavras um roteiro de muitas páginas e uma história com substância. A protagonista Kiki, por exemplo, é completamente ignorada nessa definição e é uma peça decisiva para essa dinâmica relativamente simples funcionar. Sem uma personagem com quem é fácil se identificar, humanizada a ponto de ter uma personalidade paradoxal em momentos e de conflitos reconhecivelmente humanos, todo o resto sofreria. É o que diferencia esta obra de “O Castelo no Céu“, que tem seus pontos fortes em outras áreas enquanto carece de personagens principais cativantes. As cenas mais aventuradas e até o escopo da ação são muito maiores que os daqui, em que uma bruxinha tem de entregar encomendas pela cidade e enfrentar obstáculos bobos como um temporal. Relativamente bobos, vale apontar, porque eles são coerentes com o teor da história como um todo e cumprem sua função de agregar interesse ao trajeto da garota.
“O Serviço de Entregas da Kiki” de fato não parece grande coisa em um primeiro momento e Hayao Miyazaki foi praticamente a principal razão para eu querer assistir. A surpresa agradável foi ver que tal historinha aparentemente infantil cercava o núcleo rico de crescimento e aceitação de novos obstáculos típicos de novas etapas de vida, um assunto ressonante com meu próprio momento de vida atual. Seria esse o motivo de minha apreciação pela obra? Dificilmente. A sincronia de assuntos é um ponto curioso, sim, e isso mesmo torna a obra mais passível de um olhar crítico. Falsidade e incompetência não passariam ignorados justamente por minha proximidade presente com o tema. Nada disso se encontra aqui, uma história feita de elementos básicos e funcionais com um resultado exemplar, mesmo que acabe um tanto subitamente.