Nos céus, a cidade de Zalem se eleva sobre a Cidade do Ferro. Ninguém sabe ao certo o que há na tal cidade porque o acesso é restrito a pouquíssimas pessoas; quem é de baixo não sobe e quem desce, não sobe mais. Só é sabido que lá em cima há muito mais riqueza e luxo do que em baixo, que acumula e recebe boa parte dos descartes de Zalem em um lixão gigante. Lá, o Dr. Ido (Christoph Waltz) encontra os restos de uma ciborgue enquanto caça algumas peças e eventualmente descobre que ela ainda está viva. Com o novo nome de Alita (Rosa Salazar), a garota é reconstruída pelo doutor e começa a busca por seu passado perdido.
Muito se disse sobre “Alita: Battle Angel”. A primeira coisa que vêm à mente é o que diabos passou pela cabeça dos envolvidos no projeto para investir cerca de U$200 milhões na adaptação de um mangá relativamente pouco conhecido no ocidente, o mesmo orçamento de “Pantera Negra” e mais do que “Aquaman“. Ambos são filmes de super-herói, ou seja, possuem projeção de lucro muito mais confiável. Em segundo lugar, a recepção mista não parece ser boa notícia para um projeto de risco alto como esse. O público certamente não liga para quanto dinheiro foi gasto se o filme tiver má fama, ele apenas não irá assistir. Considerando tudo isso, é de se esperar um resultado custoso e pavoroso, mas não é o que se encontra aqui. Existem deslizes e clichês praguejando aquilo que poderia ter sido um ótimo filme e, não obstante, a experiência é muito aproveitável.
Parece com algo bastante comum em um primeiro momento. Futuro distópico com a desigualdade social em níveis alarmantes, ricos em conforto enquanto o resto vive em meio ao crime desenfreado. Mesmo assim, a tecnologia avançada é de acesso para a maior parte da população, com vários indivíduos aproveitando os benefícios da robótica em casos de perda de membros ou para melhorarem seus corpos das formas mais diversas. Alguns conservam apenas alguns órgãos vitais em um exoesqueleto totalmente eletrônico para fins diversos; entre eles, equipar-se com armas para competir no Motorball, esporte em que os participantes normalmente se destroem antes mesmo do fim da partida. Eis mais um ingrediente conhecido desta ambientação: uma atividade surrealmente perigosa no maior estilo pão e circo para alimentar as demandas de uma população com gostos por sangue. Felizmente, a presença destes e outros ingredientes conhecidos felizmente não impede que “Alita: Battle Angel” seja uma interessante peça de entretenimento.
O que torna tudo interessante é o absurdo nível de detalhe do universo. Mais ainda porque a história sequer chega a explorar todo o potencial de um lugar que claramente tem muito a dizer meramente com o design geral do ambiente. Basta olhar para qualquer uma das cenas em que as pessoas seguem suas rotinas: há muita variedade em toda a cena, desde gente diferente usando roupa esquisita até um rapazinho careca com barbicha e uma espada afiadíssima portando um corpo super-modificado. É um pouco o efeito de “Star Wars” em seu tempo, quando as cenas em Tatooine e na cantina de Mos Eisley apresentaram gente de pele enrugada e com cabeça verde parecendo uma mosca conversando com outro monstro peludo de dois metros de altura. Quem imaginou tudo isso e o que cada um desses seres faz? “Alita: Battle Angel” desperta um sentimento parecido.
Talvez não seja nada inédito o conceito de uma população parcialmente ciborgue ou uma sociedade desigual com muita pobreza, muita riqueza e muito crime, mas o motivo para esse conceito ser conhecido é a quantidade de obras o usando como base, nem todas fazem isso bem. Essa é a diferença de “Alita: Battle Angel”, principalmente porque a idéia principal é ser um filme de ação ambientado nesse cenário complexo e, ligada a ele, uma trama que trabalha ambos o trajeto da protagonista e a revelação do universo. Tudo é bem simples e funcional. Há familiaridade e há também competência, então o que se descobre impressiona mais pela execução em si do que pelo fator surpresa. Por conta do espectador saber tanto quanto a protagonista com amnésia no começo da história, tudo é descoberto praticamente em conjunto.
Por exemplo, é difícil não se sentir curioso depois de ver como tudo é detalhado. Existe o esporte violento chamado Motorball, tudo bem, e o que mais se sabe dele? Não há uma diferença essencial entre isso e batalhas de gladiadores ou uma corrida mortal, todos são entretenimento a custo da vida dos jogadores. O que se aproveita, portanto, são as cenas de ação dentro do circuito de Motorball e todas as anomalias cibernéticas com o exagero clássico dos Anos 90 de quanto mais armas, melhor. Lâminas curvadas no lugar dos braços, quatro braços, rodas nos pés ou talvez serras giratórias no lugar das mãos. Seria tosco e desimaginativo se as cenas de ação não fossem tão divertidas. Com exceção do último combate, que peca por acabar muito rápido, a ação de “Alita: Battle Angel” é consistente em sua qualidade. As habilidades de Alita são exploradas perfeitamente sem que se pense por um segundo que uma ciborgue lutando muito bem já foi visto em alguns lugares antes.
Pegar todos esses detalhes e ter tempo de perceber que eles estão ali é mais do que o resultado de um longo trabalho de Design de Produção em construção de mundo. Vale lembrar do clássico exemplo de “Moulin Rouge!” e seus sets megalomaníacos, em que o figurino era detalhado e as paredes eram cheias de adereços e toda a aquarela de cores poderia ser encontrada. O problema é que nada disso poderia ser bem aproveitado porque não havia tempo para apreciar os detalhes, a direção simplesmente não permitia. Saber mostrar é tão importante quanto ter o que mostrar, então é excelente ver Robert Rodriguez deixar que seu material funcione adequadamente. Talvez com um clímax menos atrapalhado e com mais cuidado nas escolhas de elenco, “Alita: Battle Angel” seria um dos melhores filmes pipoca do ano. E, claro, a decisão de deixar apenas os olhos de Rosa Salazar grandes é incrivelmente estúpida.