Tony Lip (Viggo Mortensen) trabalha no famoso Clube Copacabana como um garçom resolvedor de problemas. Ele trata os clientes como deve, com cortesia e respeito, ao mesmo tempo que não tem problema com sujar as mãos em caso de confusão. Então o clube fecha para reformas temporárias e deixa Tony sem emprego, o que o leva a uma oportunidade um tanto inusitada: trabalhar como motorista para Don Shirley (Mahershala Ali), respeitado músico e líder de um trio. Nada de errado com isso, exceto pelo fato de Tony não ser o maior fã de negros. Para ajudar, a turnê passa por vários estados do sul dos Estados Unidos, justamente onde o racismo é mais agressivo. “Green Book” reconta uma viagem inusitada e um tanto familiar, mas que se destaca pela execução fluída e competente de um conceito já conhecido.
Nem é preciso pensar muito para fazer a associação de ouro: “Green Book” é “Driving Miss Daisy” ao contrário. Ambos indicados ao Oscar de Melhor Filme, ambos envolvendo motorista e patrão de etnias diferentes, só que dessa vez o branco é o motorista do negro. Permanece a sombra do filme mais antigo sobre o novo, a questão sobre este também ter uma moral envolvendo aprendizado e desconstrução de preconceitos com o eventual surgimento de uma amizade. Bem, não há como fugir muito disso quando as duas propostas são tão próximas, independentemente de quem dirige o carro. Os papéis se invertem enquanto o aprendizado permanece o mesmo e só então entram as individualidades desta nova proposta para mudar essencialmente as relações entre os dois personagens. Ao mesmo tempo que é familiar, não dá para dizer que é a mesma coisa ou uma cópia pouco inspirada; a história e seus personagens são reais, então trata-se de uma coincidência afinal.
Todas as comparações e sinais apontando para as similaridades óbvias estão longe de definitivas, contudo, pois “Driving Miss Daisy” passou mais por minha cabeça antes de assistir a “Green Book” do que durante ele mesmo. Como já faz um tempo desde que vi o longa de 1989, não saberia apontar especificamente como os enredos se diferem. Não obstante, ainda é possível sentir que o caminho da obra mais nova pende bem menos para o lado do sentimentalismo e de uma amizade constantemente fortalecida pelo tempo, até chegando a quebrar suas barreiras ao se conservar com o passar das décadas. A amizade existe de uma forma menos afável, se posso dizer, com dois egos imersos em vaidade e sem intenção de ceder ou abrir espaço para qualquer estímulo externo. São duas cabeças duras colocadas dentro de um mesmo carro por horas a fio.
Assim, não se trata apenas da inversão de etnia mas também da mudança de sexo de um dos envolvidos. Isso muda completamente a dinâmica da relação, que passa a ser mais masculinizada no sentido clichê da palavra, afinal o ano é 1962 e a mentalidade dominante masculina ainda tem resquícios da década anterior. Ambos agem como alfas dominantes, os senhores de suas próprias casas, seguros de tudo que acreditam e prontos para defender isso a todo custo. Eles não são o tipo de pessoa que facilmente se abre para novas amizades e muda de idéia rapidamente. Quando a hostilidade se mostra presente desde o começo, então, fica ainda mais improvável que uma relação super amigável aconteça. O fato é que Tony não gosta de negros, é um ítalo-americano que anda com sua própria turma e olha todo o resto de cima para baixo. Sua postura é clara e notável para Don Shirley quando aceita o trabalho com explícitas ressalvas. Ambos sabem no que estão se metendo.
Além disso, há também uma diferença elementar na realidade dos dois. Don Shirley ostenta todas as características de uma pessoa de classe alta e nem faz questão alguma de tentar escondê-las. Em contrapartida, Tony também ostenta suas origens humildes e até as abraça com prazer demais, demonstrando sua ignorância e até se orgulhando de sua falta de instrução em vários assuntos que seu colega domina. Juntos, todos estes elementos fazem bem mais do que apenas se diferenciar de “Driving Miss Daisy”, eles são responsáveis por estabelecer o conflito e o envolvimento daqueles personagens em mais de um nível. Vários dos atritos mostrados não envolvem a questão de um ser branco e o outro negro. Isso mostra como a relação é mais complexa do que uma primeira impressão sugere, além de que a trama provavelmente seria bem mais pobre se não tivesse todas essas fontes para beber. Além de usá-las, “Green Book” as usa bem. Além de complexidade, há também competência.
Mas o grande acerto de “Green Book” é ser uma experiência facilmente assistível. Muito embora seja uma qualidade admirável, descrever uma obra inteira assim pode soar raso e simplista porque são todas as conquistas de diversas áreas simplificadas a uma palavra. Curiosamente, é exatamente por esse esforço conjunto que tal impressão existe, por conta do roteiro preparar todos os ingredientes do conflito de antemão e em seguida situar o espectador suavemente. Tão logo que o filme começa, o público já sabe quem é e qual a ocupação de Tony Lip, conhece um pouco da sua rotina e de sua cultura ao mesmo tempo que descobre seus objetivos e ambições. Então ele conhece Don Shirley e o filme chega na parte amplamente divulgada e as peças preparadas pelo roteiro entram em jogo. A diferença deste caso para um exemplo típico de livro de roteiro para outro filme bom é que tudo flui e o espectador se sente mais do que disposto a se juntar à Tony e Don e ver onde tudo vai dar. Mecânico ou engessado são os completos antônimos do que se encontra aqui.
Quanto a fazer toda a dinâmica funcionar e manter constante o interesse do espectador, isso é também uma soma de vários fatores. São canções de épocas usadas em boa hora, apresentações do próprio Don Shirley demonstrando sua virtuosidade no piano e, principalmente, as conversas que tornam cada pedaço de viagem atraente. De um lado, há o roteiro fazendo os personagens ter algo interessante para dizer; de outro, Mahershala Ali e Viggo Mortensen interpretam tais diálogos com a sensibilidade necessária. Ambos são homens cheios de orgulho e, mesmo com todas as palavras rebuscadas e aparência madura, ainda são como dois menininhos batendo cabeça para ver quem sai por cima. Somando a tudo, essa relação quase brincalhona das duas personalidades se estranhando só ajuda a obra a fluir melhor.
E como tudo atualmente, “Green Book” foi alvo de controvérsia. Várias delas, por sinal. Algumas acusam a obra de tratar o racismo à moda antiga, amenizando os grandes crimes cometidos com frequência contra negros na época; outras reclamações vêm da parte da família de Don Shirley e questionam a veracidade da existência de uma amizade entre o músico e seu motorista, além de criticar a representação da família do primeiro. O primeiro caso está equivocado e o segundo talvez tenha margem para reclamar, mas sem que tais imprecisões factuais prejudiquem a trama apresentada. Para quem vê de fora, não há nada incoerente a respeito da relação entre duas pessoas essencialmente diferentes, não apenas em etnia. Nada soa piegas, conveniente ou exageradamente sentimental, pois há coesão no roteiro que adapta a nebulosa história original. Se houve discrepância ou contestação a respeito da amizade entre Don e Tony, é um assunto que apenas os dois homens poderiam esclarecer e ambos estão mortos. O que se encontra em “Green Book”, por sua vez, é uma interação multifacetada e rica de dois homens díspares trocando experiências e conhecimentos, que até faz amizade soar como uma mera simplificação de tudo.