É curioso que “The Favourite” esteja entre os indicados ao Oscar, a 10 deles. Irônico, na verdade, já que é um clichê bem conhecido da Academia escolher um tipo de filme: dramas históricos ou biográficos, histórias baseadas em fatos reais. Por um bom tempo, esta tem sido a tendência dominante, com algum espaço sobrando para adaptações de trabalhos literários de conteúdo relevante atualmente. Mas voltando um pouco, por que irônico? A princípio, é outra obra de época envolvendo uma figura histórica proeminente, outro exemplo pertencente à tendência da premiação. Já em um olhar mais atento, percebe-se que as aparências são apenas aparências mesmo, o conteúdo é bem diferente.
A Inglaterra do começo do Século 18 é governada por mãos não exatamente firmes. A Rainha Anne (Olivia Colman) não tem a saúde, a disposição ou a capacidade de tomar as decisões necessárias para que a nação se mantenha íntegra em tempos de guerra e tensão política interna, então alguém a ajuda com a situação toda. A Senhora Sarah Marlborough (Rachel Weisz) ajuda com todas as questões de Estado e pessoais da Rainha, sendo confidente e súdita mais fiel. Mas esse equilíbrio é ameaçado quando Abigail (Emma Stone), uma ex-aristocrata, chega no reino buscando as graças dos poderosos para retomar seu status perdido.
Novamente, parece um conto shakespeariano. Realeza, disputas de poder, atritos crescentes, traição, mentiras… todos os ingredientes de uma intriga real no sentido mais clássico do termo. E de certa forma é isso mesmo que se encontra em “The Favourite” quando esta é analisada objetivamente, sem que as particularidades do roteiro entrem em jogo. Cruamente, há um conflito entre duas figuras femininas que buscam a mesma coisa: enquanto uma quer proteger a posição que já tem, a outra tenta conquistar isso para si usando esperteza afiada e amizades estratégicas. É uma batalha que não se vence através do conflito direto, de declarações afrontosas e antagonismo aberto, e sim com sutileza, saber quando fechar a boca e manter as presas escondidas para dar o bote na hora certa.
“The Favourite” executa esse esqueleto narrativo com eficiência mesmo sem chegar a considerar todas as adições e viradas em cima deste molde. Até porque elas são isso mesmo, variações ocasionais de um modelo reconhecível. A base ainda é o conflito entre duas personalidades fortes, duas aristocratas forçadas a adequar seu atrito ao contexto peculiar para garantir que cada plano funcione. Independentemente da abordagem e do tom, busca-se usar as qualidades definitivas do ambiente da história para o melhor efeito, especialmente porque isso fortalece quaisquer elementos trazidos como novidade. Assim, a obra evita ser uma coleção de variações girando em torno de um núcleo fraco. Sem estrutura e sem uma espinha dorsal não há como construir nada, afinal uma árvore não é feita só de galhos mas também um tronco de onde estes saem.
Abigail e Sarah bem que poderiam duelar com espadas ou se atacar diretamente se isso fosse apropriado. E é claro que não é, assim como tantas outras coisas. A época em questão engloba regras peculiares, no mínimo: normas sociais de etiqueta, aparência e atitude sendo levadas muito a sério, com uma preocupação dominante a respeito de modos e atos ditos adequados a status e hierarquia; ao mesmo tempo há um lado um tanto mais agressivo e brutal, regras sendo quebradas subitamente por quem detém o poder com resultados freqüentemente marcantes. Ora as pessoas se tratam com cordialidade e usam palavras educadas para comunicar sutilmente sua animosidade, ora se puxa o tapete na esperança de que o outro caia e quebre os dentes. Não chega a ser um jogo perigoso no nível de “Game of Thrones”, por exemplo, embora as súbitas demonstrações e manipulações de “The Favourite” tenham seus próprios méritos e funcionem bem sem precisar recorrer à fatalidade.
O verdadeiro diferencial surge nos detalhes. É dito por aí que “The Favourite” é uma sátira dos dramas de época envolvendo a realeza. A partir disso várias idéias surgem. Em que sentido é uma sátira? Isso pode significar desde um roteiro repleto de piadas e trocadilhos até comédia física e desconstrução de clichês através de um humor autoconsciente. Os primeiros momentos inclusive não demonstram imediatamente que há humor algum na história exceto por uma cena com um toque pequeno dele. É apenas mais adiante que fica claro que essa cena faria sentido dentro do enredo e seria o primeiro passo de uma identidade humorística única. Não se trata de um filme escrachado e explícito no modo como ele encara seu tema central, pois muitas vezes se percebe que a graça está sendo feita sem que se aponte o dedo para ela e se diga que não há dúvida de que se trata de uma cena com humor. É uma forma diferente e absolutamente funcional de abordar o conceito de sátira. Tratar as subversões como algo normal, sem chamar a atenção para elas como tal, é a forma que se encontra de surpreender o espectador constantemente; são atitudes e eventos que não eram para fazer sentido numa obra padrão e estão ali como os representantes da sátira sem destoar artificialmente do contexto da história. É um pouco como “The Hateful Eight” arranja formas e mais formas de gerar humor criativamente sem quebrar agressivamente as convenções do faroeste.
Tal duplicidade exige muito do elenco, que passa a ter duas tarefas nas mãos: ser sério o bastante para o conflito central da obra funcionar, fazer o público acreditar na motivação de cada personagem como algo elementar e alimentador de seus atos; e novamente manter a seriedade nas tais cenas de comédia a fim de convencer que eles estão totalmente investidos na piada para garantir sua eficiência. Em outras palavras, são os atores que não entregam o jogo já no primeiro momento a respeito da intenção da cena, mantêm a postura para deixar o espectador se tocar que há uma alfinetada cômica ali. Ninguém melhor que Rachel Weisz e Emma Stone na manutenção destes dois pólos, enquanto o resto do elenco tem uma tarefa menos árdua por seus papéis serem mais claramente definidos em termos de tom. Nada que mate uma boa performance, claro, como pode se ver em Olivia Colman e sua personagem autocontida em sua bolha de problemas e peculiaridades, sendo também uma grande fonte dos curiosos absurdos de “The Favourite”.
Yorgos Lanthimos novamente demonstra consistência na criação de uma história sem falhas no gerenciamento de tom e, conseqüentemente, de suas próprias peculiaridades. Não há incoerências no conjunto de regras da história ou problemas na forma como são tratadas. É fácil imaginar os toques cômicos de “The Favourite” indo longe demais ou de menos, seja deixando muito explícito que dada cena é uma gracinha sobre os costumes reais da época ou tratando-a com tanta sutileza que ela se confunde com uma cena normal. Muito poderia ter dado errado aqui, porém o que se encontra é uma alfinetada em diversas frescuras de uma era da história humana e outra — talvez não intencional — na cultura que a Academia cultivou ao longo dos anos: ao mesmo tempo que se encontram todas as qualidades de um típico filme de Oscar, a obra se destaca por justamente tirar sarro de seu próprio universo.