“Split” começa em um dia como outro qualquer. O pai está levando a filha e duas amigas dela para casa depois de uma festa de aniversário, mas o dia acaba bem diferente de como começou. As três garotas se encontram presas em cativeiro por um cara estranho. Estranho de vinte e três formas diferentes. Kevin (James McAvoy) sofre de síndrome de múltiplas personalidades, tendo inúmeras pessoas dentro de sua mente lutando para se manifestar em um corpo só. A única esperança para as garotas fugirem de sua prisão é saber lidar da forma certa com a personalidade certa. Elas só não sabem que Kevin está passando por algum tipo de mudança que pode complicar ainda mais a situação.
Tido como o retorno triunfante de M. Night Shyamalan, um dia considerado o novo Spielberg, “Split” viu sua reputação crescer consideravelmente por ser considerado bom. Ou por não ser terrível, pelo menos. Quatro dos seus últimos cinco filmes tiveram uma recepção esmagadoramente negativa e este outro não passou longe da mediocridade, então alguma coisa boa depois de uma seqüência infeliz como essa certamente se destaca. Mas será este suposto retorno tão grande quanto sua publicidade? Como acontece em inúmeros casos, superestimam-se as conquistas, o que não quer dizer que elas não existem. O filme é decente, só não é tudo isso.
O lado bom é exatamente aquilo que se espera: as personalidades em ação. Isso é uma oportunidade de ouro para James McAvoy demonstrar diversas facetas, diversos personagens propriamente ditos em um filme só. Isso pode lembrar os três personagens de Peter Sellers em “Dr. Strangelove” e até, aparentemente, mostrar como a empreitada de “Split” é tão mais ambiciosa ao mostrar não três, mas vinte e três personagens interpretados pelo mesmo ator. Ainda que quantidade por si fosse um feito impressionante, não são todas as personalidades que aparecem. Cerca de metade delas surge pelo menos por alguns instantes, enquanto as outras são apenas mencionadas, talvez uma deixa para possíveis continuações explorá-las. A dinâmica de conhecer cada uma funciona melhor quando ainda não se sabe absolutamente nada, no início da história, e a narrativa é construída buscando capturar o interesse com esses momentos de estranheza. O que parece ser um rapto como qualquer outro — seja lá o que isso for — mostra aos poucos seus segredos insanos.
Assim, talvez a experiência teria sido ainda mais curiosa se o espectador não soubesse de algo além do rapto e aos poucos percebesse que há algo errado com o tal seqüestrador; sem a publicidade do longa entregar o jogo já no começo. De qualquer forma, a dinâmica funciona mesmo assim porque não deixa de ser legal ver o mesmo indivíduo se comportar tão diferentemente de cena para cena. No entanto, não é uma conquista dramática incrível da parte de James McAvoy justamente por esse detalhe: diferentes personalidades surgem em diferentes cenas. Portanto não se encontra um ator se transformando completamente em uma mesma cena, recriando instantaneamente os trejeitos, gestos, entonação e todas as qualidades que caracterizam uma pessoa. Há tempo para ele aparecer com outro figurino, por exemplo, e adequar-se com calma a outra personalidade.
Isso não tira o mérito de McAvoy de conseguir ser consistente e crível na interpretação de cada um, vale notar. Bastaria um personagem falhar para o conceito inteiro de múltipla personalidade cair por terra, afinal de contas uma pessoa com esse transtorno não atua, simplesmente é. Ver que uma das partes é caricata demais, por exemplo, seria o fim da credibilidade e da melhor parte de “Split”, a qual seria ainda mais atraente se o roteiro não simplificasse tanto as coisas. Para quê 23 personalidades? Por que não um número menor e melhor explorado? Mesmo não sendo todas que aparecem, aquelas que o fazem podem ser descritas sem injustiça como rascunhos bidimensionais, personalidades resumidas a qualidades superficiais tentando se passar como algo mais profundo. Falar rebuscado e se interessar por conquistadores da Idade Antiga não define um ser humano, mas é isso que se pretende.
Onde se busca chegar com isso tudo? Aparentemente, a idéia de construção e desenvolvimento de personagem em “Split” envolve esse transtorno de personalidade e seu funcionamento peculiar dentro da mente de Kevin, como uma persona tem poder sobre as outras, quando e por que deve existir esse revezamento. Pode-se dizer com tranqüilidade que há muita informação para desvendar ou, como “Split” prefere, expor. Despejar informação em doses não necessariamente significa um mistério cativante ou competência narrativa. O processo é tratado de forma branda, simplesmente dividindo o conteúdo em partes sem despertar uma curiosidade flamejante no processo. Tal retenção, aliada às explicações simplistas dadas para a condição, configura uma relação pista-recompensa decepcionante, ainda que não totalmente detestável
Sim, “Split” está longe da grandiosidade ilustrada em sua publicidade. Não, não é uma catástrofe. De um lado, a premissa se baseia na descoberta de um personagem psicologicamente peculiar bem interpretado por James McAvoy; de outro, o embasamento e a profundidade fedem a psicologia de senso comum, evidente nas personas e explicações rasas. Ao menos o conjunto da obra funciona melhor do que a análise específica de seus elementos sugere. É um suspense que consegue ficar livre da previsibilidade e até ter toques leves de tensão, além de não ser outro capítulo na história de recepções críticas avassaladoras de Shyamalan. Ninguém precisa de mais um filme ruim em suas vidas.