O que passa na mente de uma pessoa perturbada? Essa questão que as capacidades da empatia e qualquer esforço que alguém pode fazer para tentar se colocar no lugar de outra pessoa. Vai muito além de simplesmente imaginar o que outro indivíduo pensaria, sentiria ou como ele agiria em dada situação. O funcionamento de uma mente doente, psicótica, com patologia ou seja lá o nome que se escolha é justamente fora da curva, fora do que parece lógico, racional ou ao alcance de um dito indivíduo normal. Mas não é impossível descobrir o que se passa. No mínimo, o registro de observação de comportamento evidencia os padrões de cada condição. “The House That Jack Built” trata exatamente disso, um retrato do jeito característico do diretor Lars von Trier.
A história acompanha Jack (Matt Dillon), um homem aparentemente normal em todos os sentidos. Ele mora numa cidadezinha, tem seu empreguinho, dirige um carro barato e faz as coisas que todos fazem todos os dias. Isso muda um dia. Quase por acaso, por uma coincidência de fatores e pressões externas, Jack comete o primeiro assassinato de uma grande série deles ao longo de 12 anos. Ele reconta seus atos usando cinco episódios aleatórios, tentando explicar qual a grande história por trás de atos que costumam ser simplificados como atrocidades.
Considerando quem dirige “The House That Jack Built”, era de se esperar que tal retrato seria tudo menos contido. Não chega a ser Quentin Tarantino o responsável, caso contrário se poderia esperar sangue esguichando e degolações regulares. Mesmo assim, Lars von Trier está longe de ser um diretor que se resguarda na representação de qualquer assunto. Ao menos não é o que ele tenta fazer aqui. Essa postura mais agressiva leva à palpável possibilidade da polêmica, de expor algo facilmente considerado como hediondo ou inapropriado de forma quase teatral, com destaque e um olhar íntimo demais dos eventos sob a perspectiva singularmente distorcida do protagonista. Provavelmente pode parecer que o filme e seu diretor acham assassinato divertido por não tratar dele com seriedade ou o peso que normalmente se atribuí. No entanto, vale lembrar que nem sempre uma obra reflete diretamente as crenças da pessoa por trás dela. Cinema ser uma forma de expressão não significa que von Trier gosta de ver gente morrer por causa de uma pulsão sádica.
Em certos momentos, essa impressão esquisita fica um tanto mais clara. Cenas explícitas não só pela representação gráfica mas também pelo fato em si, ambos unidos para chocar o espectador com aquilo que passa na cabeça de Jack. E, sim, é recorrente o tom cômico em cima de mortes como essas e com uma razão bem explicada: o próprio assassino acha graça naquilo que faz. Com certeza não o tipo de graça com que todos estão acostumados, é uma forma bastante peculiar de enxergar as coisas e ver entretenimento, realização pessoal e até arte em assassinato. Novamente, não se trata daquilo que o roteirista ou o diretor acreditam, pois seu trabalho é deixar crível que o protagonista acredite neste conjunto de valores distorcidos e que realmente mate uma pessoa com uma pancada na cabeça porque acha aquilo poético de alguma forma. “The House That Jack Built” tem sucesso onde tantas outras obras erram porque não usa o efeito de choque e se limita a ele. Junto de uma cena grotesca envolvendo a mutilação de um corpo feminino há elementos que justificam aquele evento dentro da narrativa.
Não é como “A Serbian Film” e suas demonstrações de necrofilia porque sim, há uma base bem construída tentando tornar tudo aquilo aceitável aqui. Sem que haja tentativa de convencer o espectador a concordar com o assassino, o objetivo é tentar mostrar onde ele quis chegar. É exatamente este o propósito principal da obra e também seu maior acerto. A forma da narrativa é essencial na construção deste argumento. “The House That Jack Built” começa com o assassino confessando para um velho as coisas que fez ou, pelo menos, cinco incidentes bastante detalhados. Cada pedaço de história traz um pouco da perspectiva ímpar de Jack, que não enxerga a perda de uma vida como uma tragédia, como uma pessoa removida da companhia de parentes e amigos, como uma destruição das memórias do passado e os sonhos do futuro… Bem, não é preciso dramatizar a morte porque é sabido que seu peso não é leve. Por isso mesmo o esforço contínuo da história de tentar ilustrar o contrário é tão importante.
Mais do que apenas inverter valores e dizer que uma morte não é nada para Jack, busca-se mostrar que a importância existe, porém diferente. Existe intenção e propósito por trás de cada morte, por mais que as circunstâncias pareçam totalmente casuais. Jack não só narra os eventos e tenta explicá-los como também debate constantemente com Verge (Bruno Ganz) sobre. Há o ponto de vista e um contraponto incisivo refutando várias afirmações e conseqüentemente extraindo outras novas explicações. De forma geral, “The House That Jack Built” se esquiva de uma identidade documental branda, com apenas uma pessoa falando sobre um assunto, quando uma opinião diversa é introduzida. Cria-se diálogo dentro de uma narrativa relativamente expositiva e direta ao ponto, algo que a enriquece por instigar uma maior exploração do que é dito inicialmente. É como se Verge fizesse as perguntas que a audiência faria para alguém como Jack, só que conseguindo respostas ao invés das esquivas mentirosas que psicopatas costumam fazer.
Mas “The House That Jack Built” está longe de uma entonação séria. Claramente há uma tendência à comédia e ao humor negro matando qualquer ar demasiadamente maduro sobre o tema. O melhor de tudo é que este não sofre nem um pouco por conta do humor. A idéia de “The House That Jack Built” continua sendo de representar a lógica distorcida — ou a falta dela — que rege as atitudes de uma pessoa que mata pessoas, só que com alguns toques de comédia aqui e ali representando a própria noção bizarra do que é engraçado para Jack. Para isso funcionar, a combinação de situações absurdas com a atuação certeira de Matt Dillon nas cenas cômicas funciona para estabelecer o humor sádico do protagonista. Mais ou menos como rir porque outra pessoa também ri do que da piada em si. É fácil acreditar e entrar na brincadeira quando Dillon mostra-se tão entretido com suas próprias idéias e atitudes.
O único grande problema de “The House That Jack Built” é seu final. O roteiro perde completamente o ritmo e a oportunidade de concluir a história em um momento que soa como certo, relativamente. Para não dizer que não há nada relevante nos longos e arrastados momentos finais, há significado e sentido, só não parece que sim por um bom tempo. Demora-se muito para chegar ao ponto, prejudicando bastante o andamento de um filme que até então havia surpreendido em todos os quesitos por ser um retrato colorido e multifacetado de uma mente perversa. Nesta conclusão, a vontade de ir além com uma metáfora vence a importância da objetividade.