“Eu achei que [Rob Zombie] acabou com o misticismo da história ao explicar demais sobre [Michael Myers]. Eu não ligo para isso. Ele deveria ser uma força da natureza, quase sobrenatural. E ele era grande demais. Não era normal”. Essas foram as palavras de John Carpenter sobre o “Halloween” de Rob Zombie. Certeiro em seus comentários, Carpenter soube apontar melhor do que qualquer um por que o remake falha em tentar ressuscitar o assassino do limbo criado por “Halloween: Resurrection”. No entanto, dinheiro sempre fala mais alto e o filme de Zombie não se saiu mal nesse quesito. Eis que ele teve maior liberdade para fazer o que quisesse com “Halloween II”, que consegue ser tão ruim quanto sua fama.
Depois do retorno sangrento de Michael Myers (Tyler Mane) à Haddonfield, sua irmã mais nova, Laurie Strode (Scout Taylor-Compton), passa a morar com o xerife da cidade e sua filha, outra sobrevivente dos ataques. O corpo do assassino some sem sinal e nunca reaparece. Dois anos depois, Michael ressurge de seu exílio e continua a matança em busca de Laurie, que ainda carrega consigo várias cicatrizes profundas daquele Halloween traumático. Mesmo sem se recuperar direito da carga emocional, ela deve enfrentar seu maior pesadelo mais uma vez.
Pensando no assunto de liberdade criativa, é fácil pender para o lado dos artistas e condenar os engravatados dos estúdios por limitar a visão do indivíduo com vetos ou exigências diversas. Franquias grandes costumam sofrer mais com isso por conta de já existir uma mitologia intocável, cuja gama de limitações pode ir de poucos pontos à estrutura inteira da obra. Só não é freqüente pensar no outro lado, no que aconteceria se todo artista pudesse fazer o que bem entendesse com o dinheiro que tem em mãos, normalmente o de outras pessoas. “Halloween II” dá uma idéia iluminadora sobre o assunto, pois foi justamente isso que aconteceu. O primeiro estava quase completamente de acordo com o senso comum, uma parte seguindo os mesmos passos do original e outra seguindo a moda de explorar o passado de figuras populares. De qualquer forma, mesmo este diferencial foi bem-vindo em uma série numa fase ruim, agradando as exigências externas. Sem as mesmas restrições, Rob Zombie surpreende, no mínimo.
É difícil saber por onde começar por haver muita coisa errada em “Halloween II”, então é melhor falar do pouco que dá certo. Uma das seqüências iniciais pode ser facilmente colocada entre as melhores dos filmes de Zombie, talvez a melhor. Nenhuma outra conseguiu casar uma primeira impressão negativa com um propósito posterior, mostrar algo que parece fazer parte da filosofia operante de ser o mais obsceno possível para depois mostrar que há uma função para isso. No começo, parece apenas Rob Zombie sendo exagerado como de praxe, depois se torna uma das poucas perseguições sem um ar genérico sobre si. Mas até isso dura pouco e mostra ser um acerto pontual entre outros erros, tanto que ambas as seqüências prévias como as seguintes passam longe do mesmo nível de competência.
Novamente, o filme começa com uma frase de teor filosófico. Texto branco sobre um fundo preto abre “Halloween II” explicando o significado do cavalo branco como uma ligação ao instinto, à pulsão de liberar poderosas forças emocionais, como raiva, e causar caos e destruição. Talvez numa tentativa de dar um tom mais maduro para uma história sobre assassinato em série, talvez para tentar amenizar a série de explicações dadas para aquilo que Carpenter imaginou como uma força da natureza, algo instintivo. Penderia para a segunda se até esse simbolismo do cavalo não tivesse sido transformado em mais uma explicação para a condição de Michael Myers. Não só isso, como também se torna a maior fonte de vergonha alheia pretensiosa da obra, de muito longe. “Blade Runner“, por exemplo, tentou algo parecido com origamis de animal com sentidos variados, inclusive um unicórnio. A diferença é que este os usa muito mais esporadicamente e de forma sutil, porém relevante para a história.
“Halloween II” é um ótimo contra-exemplo de como utilizar simbolismo num roteiro. Não há como saber inicialmente que o texto introdutório teria um caráter tão ridiculamente expositivo, que deixa totalmente explicado e claro o que o cavalo branco e a mulher e criança vestidos de branco significam dentro do contexto da trama. Antes fosse apenas um símbolo óbvio, mas se vai ainda mais longe ao incluí-los a cada dois momentos e até mesmo como forma de embasar um tipo de conexão para-psíquica entre Michael Myers e Laurie. Sim, isso existe e é apenas um dos exemplos de idéias bizarras de um enredo que ocasionalmente não faz sentido e é tenebroso quando faz.
Não há porquê a onda de assassinatos começar dois anos depois da original. Tudo bem, é compreensível que o assassino não tenha continuado imediatamente na mesma madrugada por conta de todos os ferimentos que sofreu. Supondo que ele tirou um tempo para se recuperar e que usaria a noite de Halloween para voltar a matar, por que não voltar no ano seguinte? Parece bobagem, mas só penso nisso porque a razão aparente dada em “Halloween II” é absolutamente branda. Talvez fosse necessário um pouco mais de tempo para que Laurie fizesse a transição de menininha de família até rebelde que se veste como roqueira, faz questão de ser agressiva e… tem uma foto de Charles Manson no seu quarto? A rebeldia até poderia incluir a possível idolatria a Manson, que se achava um visionário desajustado numa sociedade quadrada demais. Mas não se pode esquecer que ele é o responsável pelo assassinato em massa que matou Sharon Tate, grávida de quase nove meses, e outras quatro pessoas. O mesmo crime que causou o grande trauma que ela enfrenta.
É um detalhe mínimo que aparece, talvez, por 5 segundos e é o bastante para mostrar como a visão deste filme é quebrada. Mais do que isso, mostra como até os mínimos detalhes podem fazer a diferença se atenção não for dada a eles. A câmera é um instrumento clinicamente preciso que não perdoa os mínimos erros. Caso fosse um tipo de Síndrome de Estocolmo, uma afinidade patológica, simbolizando o estado fragilizado de Laurie, seria mais tranqüilo aceitar tal detalhe. Exceto por um detalhe. É difícil fazer isso com uma atuação estrondosamente ruim de Scout Taylor-Compton, que representa instabilidade emocional e mental como raiva e o maior número de palavrões no menor número de frases possível. Uma visão violentamente superficial de um processo turbulento de luto, em poucas palavras. Pior ainda é no que “Halloween II” tenta transformar esse estado mental.
Há ainda uma subtrama envolvendo Loomis aspirando a uma história de redenção complementar ao arco de Laurie e só conseguindo ser uma constante interrupção na narrativa. A trama, que já se destacava por ser ruim, ainda lida com interlúdios de Loomis com alguns dos piores diálogos da memória recente. Somando isso à decoração do bolo, que é estragar a boa máscara do anterior e mostrar Michael grunhindo freqüentemente e até falando, e há uma bela de uma bagunça. Sinceramente não esperava que “Halloween II” fosse tão ruim como foi dito e nem cogito como poderia ser pior, já que dizem que a versão de cinema é ainda inferior à versão sem cortes.