Antes de fazer seu nome com renomados e premiados Épicos como “Lawrence of Arabia“, “Doctor Zhivago” e “A Passage to India”, David Lean já realizava grandes filmes sobre assuntos relativamente pequenos, em comparação. Enquanto os primeiros lidam com questões de vida ou morte, honra, conquistas militares e até mesmo religião mesclada com política, dramas como “The Passionate Friends” tratam do básico da convivência humana ao falar do mero envolvimento entre um homem e uma mulher. Neste caso, é um pouco além disso: entre uma mulher, seu marido e o passado dela envolvendo um terceiro elemento. Soa curiosamente similar ao que foi visto em “Brief Encounter“, mas definitivamente é uma obra diferente.
Mary (Ann Todd) e Steven (Trevor Howard) um dia foram um casal jovem muito apaixonado. Eles viviam um pelo outro e continuariam assim por quanto tempo fosse permitido; ou ao menos era essa a esperança dos dois. Um dia, a garota decide que não pode pertencer a ninguém, nem mesmo à pessoa que ela mais ama e, assim, encerra seu relacionamento. Nove anos mais tarde, os dois se encontram enquanto Mary passa férias em um resort na Suíça com seu marido, Howard (Claude Rains), que ainda não chegou e sabe do envolvimento passado dela com Steven. Ver seu antigo amor novamente inunda a mente da moça com lembranças, que relembra de tudo que eles passaram vividamente.
Talvez essa premissa acenda o alerta vermelho para aqueles com aversão à flashbacks. Com razão, é um mecanismo que pode ser sensatamente considerado como bengala narrativa para expor informação da história em qualquer momento e, especialmente, quando é conveniente. Um exemplo tosco: o vilão aparece apontando uma arma para a cabeça de uma garota e o herói congela, então entra um flashback mostrando que ela é alguém importante para o protagonista. Talvez esse fosse um momento quente da trama, aguardado há muito porque o mocinho tem perseguido o vilão o filme todo. Não dá para simplesmente interromper esse momento sem uma razão muito bem justificada, quem dirá parar o fluxo com um pedaço de informação totalmente anticlimática. É uma aversão válida aqui, pois “The Passionate Friends” faz forte uso de flashbacks em sua narrativa com um porém: não há amadorismo em lugar algum.
O porquê disso é perfeitamente claro com a presença de David Lean e um roteiro que usa o artifício de forma que nem de longe se assemelha ao que foi descrito anteriormente. Uma das razões por trás da fama do diretor é seu talento na Edição de seus filmes, área em que trabalhou no início de sua carreira antes de entrar para a direção em 1942. Ele também tem crédito no roteiro, então não seria de todo absurdo dizer que sua influência na obra foi além da direção de cena e atores, abrangendo o filme como um todo. “The Passionate Friends” é, em essência, uma história sobre o passado. É difícil imaginar uma obra inteira com essa idéia central sem ao menos alguns retornos à águas passadas para ao menos contextualizar o romance e não limitar sua caracterização ao que é dito pelos personagens.
O diferencial é trabalhar com essa ferramenta de forma criativa. “The Passionate Friends” a usa tanto que a maior parte da trama se passa no passado, inclusive chegando num ponto em que existem flashbacks dentro de flashbacks. Seria caos narrativo completo? De forma alguma. É elementar que o espectador se importe com os personagens envolvidos e tenha um carinho especial por aquilo que Mary passou com Steven, já que é este o relacionamento que nutre o conflito principal da trama. Assim, é completamente aceitável que a audiência seja apresentada a razões para valorizar aquele caso antigo entre tais personagens. Sem isso, seria facilmente uma questão de julgar a situação unilateralmente, dizendo que a mulher deve ficar com seu marido porque… quem é o amante mesmo?
Com isso em mente, chega a ser difícil chamar tal trecho de flashback por conta de seu comprimento, pois talvez seria igualmente sensato chamar o resto do filme de flashforward. E mais, há cuidado até mesmo nos flashbacks ocorridos enquanto se está no passado. Neste ponto, é fácil notar como a edição torna fluída a transição entre o começo de uma memória e seu fim, estando perfeitamente atenta ao clima de cada cena para saber quando fazer o salto. E claro, a cena em si deve estar dramaticamente afinada para que essa oportunidade sequer exista, o que novamente recai sobre o diretor por ser este o responsável por escolher qual tomada é a mais apropriada e por ajudar a construir o clima com o resto da equipe. Isso sem contar o uso de um simples efeito sonoro como a freada de um carro acordando a moça de seu devaneio para interromper o breve interlúdio meloso e impedir que ele seja invasivo demais. Simples, mas eficiente.
Isso tem importância bem maior do que mero exibicionismo técnico. Também é elementar para que o triângulo amoroso, central para “The Passionate Friends”, funcione adequadamente. Assim como o espectador deve se importar com Steven e Mary, não há como tudo ser sobre eles; caso contrário, aconteceria novamente a unilateralidade de torcer apenas para um lado porque o outro não existe. É exatamente neste ponto em que “The Passionate Friends” desfere seus cortes mais fundos. Detalhes à parte, limito-me a dizer que filmes menos imaginativos e superficiais arranjariam jeitos incrivelmente previsíveis de embrulhar essa situação complexa entre três pessoas unidas pelo amor — relativamente.
A união destes três elementos tem uma base confiável na estrutura do roteiro; sua execução, contudo, recai sobre o elenco. Ann Todd é perfeitamente escolhida para o papel como uma mulher bela sem ser uma musa e sugerir que a faísca de seus relacionamentos é aparência física. É perfeitamente o perfil de uma mulher em seus 30 e tantos anos, que já não está mais em sua fase de romances juvenis efêmeros ou no ápice de sua beleza. Então não é por mera luxúria que as coisas acontecem. Ao menos não é isso que se nota na posição de Trevor Howard em relação à personagem e muito menos de Claude Rains, interpretando o marido pragmático e austero.
“The Passionate Friends” pode parecer uma oportunidade perfeita de usar o flashback ou mesmo de executar o clássico conceito de triângulo amoroso de forma terrível. Nem um, nem outro. Esta é uma história sobre sentimentos enterrados antes mesmo da pessoa se familiarizar com ele, de relacionamentos que poderiam ter sido e aparentemente ainda poderiam ser, mesmo que dentro do espectro da fantasia individual. Há mais aqui do que as aparências sugerem, definitivamente. Muito mais um drama pungente do que um conto relaxado sobre corações divididos e amores não superados.