Antes de qualquer coisa: não, “The Thin Blue Line” não tem absolutamente nada a ver com “The Thin Red Line“, filme de guerra indicado a vários Oscar e dirigido por Terrence Malick. São nomes bizarramente similares, mas até onde se sabe nenhum usou o outro como inspiração. Já em termos de conteúdo, os dois não poderiam ser mais diferentes, um sendo um extenso conto sobre a campanha americana no front japonês e o outro um documentário incisivo sobre a situação de um homem encarcerado e até mesmo sobre todo o sistema judicial americano. Se parece um assunto chato e sem graça, essa não poderia ser uma impressão mais incorreta sobre o que já foi considerado uma das obras mais influentes e bem-conceituadas do gênero.
A história introduz, primeiramente, Randall Adams, condenado a prisão perpétua por assassinar um policial a sangue frio quando este abordou seu carro e pediu para ver os documentos. Como ele chegou ali? Ele apenas estava vagando por Dallas em busca de emprego quando acabou ficando sem gasolina. Um rapaz o ajudou e passou o dia com ele no cinema, bebendo e se divertindo. Quando o policial é morto, poucas pistas surgem e a pressão para encontrar um culpado cresce descomunalmente porque a maioria dos casos de policiais assassinados é resolvida rapidamente. A justiça encontra em Randall um suspeito perfeito, que é enviado para a prisão sem mais. Errol Morris, o diretor, conta a história deste crime e como ela pode não ter sido bem assim.
Talvez o leitor já conheça a fama do documentário para além dos elogios. Inúmeras fontes, incluindo a Wikipédia e livros técnicos de cinema, falam de “The Thin Blue Line” e sua importância já associando um feito incrível decorrente da existência deste documentário. Como o próprio IMDb já entrega o jogo e lá é o lugar onde muitos conhecem filmes novos, perde-se o sentido de tentar manter segredo sobre o legado de “The Thin Blue Line”. Por enquanto, apenas digo que sua narrativa atinge um sucesso muitas vezes considerado utópico para trabalhos artísticos e documentários, em especial, que costumam abordar assuntos de cunho social de fato existentes. Em palavras chulas, existe o que se chama de moral da história e, por trás dela, uma intenção de causar um impacto no espectador com esperança de mudança significativa de pensamento ou comportamento. Ou seja, um filme sobre poluição e aquecimento global, como “An Inconvenient Truth“, fazer com que membros do público deixem de usar seus carros em alguns dias da semana para minimizar o impacto ambiental, citando um exemplo.
Utópico porque é difícil conseguir algo assim e presunçoso afirmar que uma obra de arte causará uma impressão tão forte que o mundo se ajustará ao impacto causado. Mas não é impossível. Essa possibilidade deve alimentar as ambições dos artistas para darem seu máximo na criação de uma mensagem forte e comunicada com eficiência. “The Thin Blue Line” consegue esse mérito usando as ferramentas de um documentário, as mesmas para as quais as pessoas ocasionalmente torcem o nariz. E faz sentido, de certa forma. Falando por cima, uma entrevista não tem o mesmo apelo que a performance forte de um ator popular, talvez por isso as pessoas lembrem muito mais do Oskar Schindler de Liam Neeson do que de tantos outros rostos mostrados nas mais de 9 horas de Shoah. Claro, objetivamente não há como dizer que uma abordagem é melhor que a outra. Tudo depende de como o responsável pelo material lida com ele. Assim como existem atuações e tramas horríveis, há também depoimentos sem vida e monótonos.
Errol Morris conquista algo que incontáveis documentários não conseguem: uma narrativa forte. Sem dúvida um insucesso nesse ponto tem uma parcela de culpa na reputação do gênero como chato ou entediante: uma narrativa forte. Quantos cineastas escolhem um tema pelo qual são apaixonados e decidem fazer um trabalho sobre ele, mesmo que não haja uma história boa ali no meio? Tudo bem gostar de motocicletas Harley-Davidson e talvez ser cativado por sua influência na cultura popular, tentado a fazer um filme sobre os mais de 100 anos da empresa. Mas e se não houver nada que possa ser chamado de dramático? Sempre haverá uma história, o que não significa uma boa história. Às vezes o conteúdo não pode ser reproduzido facilmente ou gravado, o que complica a vida de um cineasta de documentário que precisa de lugares de sobra para apontar a câmera e depois montar o filme.
Sem mais demora, todos esses objetivos difíceis de ser alcançados são atingidos aqui. Há uma boa história, personagens vocais e com opiniões e discursos que agregam para um argumento muitíssimo bem definido desde os primeiros momentos. Não há um momento sequer em que o espectador sente que se está fugindo do tema principal para explorar outro foco apenas legal. O material é conciso e direcionado a um propósito claro: recontar o envolvimento de Randall Adams usando várias vozes e evidenciar todos os furos no grande todo. Isso pode soar como um alerta vermelho para um produto manipulativo, que fabrica a realidade e usa viés de confirmação para construir argumentos. Para não discorrer muito sobre isso, basta dizer que isso é sempre feito, mas há sempre um limite do aceitável. Nada que “The Thin Blue Line” demonstra soa como manipulação desonesta, nem mesmo quando certos acontecimentos são reconstituídos usando atores e menos ainda quando as evidências são apresentadas. De certa forma, o filme funciona como uma investigação ou um julgamento, com as provas aparecendo uma após a outra para que alguém dê um veredito.
O juiz, nesse caso, é o espectador, mas é claro que o diretor não ocupa uma posição passiva; caso contrário, cometeria o mesmo erro comentado anteriormente de expor informação sem chegar a lugar algum. Fica claro que ele tem certas intenções por trás da organização dos depoimentos e escolha de trechos, só que nunca chega a ser algo que diz explicitamente: “Essa é minha intenção; essa pessoa é culpada e essa inocente!”. A opinião final fica a cargo da audiência, que tem a chance de olhar para a situação sob um ponto de vista privilegiado. É isso que a direção de Morris faz tão bem em “The Thin Blue Line”. Não precisa de uma narração tentando minar o depoimento de uma pessoa ou forçar uma leitura sobre ele. Considerando a situação complicada como um todo, cada pedaço de informação fala por si.
Seria muito simples apresentar uma informação com um julgamento de valor anexado. Também seria incrivelmente estúpido. Errol Morris, tendo trabalhado como detetive particular, faz um trabalho parecido na busca pela verdade, que é um conceito volúvel, sim, e por isso ele toma a decisão correta de mostrá-la em suas diversas facetas. Algumas são mentirosas e denotam isso claramente. Às vezes chega a ser patético para o indivíduo em cena, pois suas afirmações simplesmente são incompatíveis com a realidade. É como uma pessoa falar que é muito inteligente porque vendeu seu carro por mil reais e comprou de volta por dois mil. Não há coerência em alguns, enquanto outros impressionam por insistirem com eloqüência em um argumento ridículo ou por realmente fazerem sentido diante de tanta desinformação e histórias furadas.
É difícil falar de “The Thin Blue Line” sem pensar na parte teórica do Cinema, pois ele se sai absurdamente bem em sua proposta. Desde o básico de escolher um argumento, uma premissa, manter-se firme e modelar todo o resto da narrativa a fim de que o embrião inicial se desenvolva em algo maior e mais forte sem esconder que é uma evolução do que se viu no começo. A escolha de assunto e seus personagens é certeira e orquestrada perfeitamente nas mãos do diretor, que também escreveu e editou o filme. Mas, enfim, qual foi o grande sucesso de “The Thin Blue Line”? Um ano depois de seu lançamento, que expôs a tragédia controversa de Randall Adams, ele teve sua sentença de prisão perpétua anulada. Sim, um filme fez a diferença no mundo e diretamente no futuro de uma pessoa, que poderia ter morrido na cadeia em anonimato. Mais do que o melhor documentário que vi na vida, são obras-primas como essa que inspiram a chegar mais longe com a arte.