Antes que alguém diga que a tradução brasileira colocou “Millenium” e todo o resto no título sabe-se lá por que, vale dizer que este é o título da trilogia de livros suecos de Stieg Larsson, os quais foram eventualmente adaptados para o cinema em 2009. Curiosamente, a versão brasileira acerta enquanto a americana troca o original por “The Girl with the Dragon Tattoo” — algo como “A Garota com a Tatuagem de Dragão”. Curiosidades à parte, esta adaptação americana dirigida por David Fincher introduz ao público ocidental a heroína incomum Lisbeth Salander (Rooney Mara), uma garota de estilo e aparência completamente avessos ao que costuma ser visto. Ela é uma anti-heroína no sentido mais literal da palavra por inverter e subverter os conceitos de normalidade, uma prova viva de que o padrão não é a única opção para um personagem principal.
Seu cabelo é cortado curto e penteado atipicamente no estilo punk. As sobrancelhas são descoloridas e piercings podem ser encontrados por todo o corpo entre camisetas largas e calças rasgadas, acompanhadas de um par de coturnos e um cigarro entre os dedos. Aos 23 anos, ela continua sem poder fazer aquilo que alguém de sua idade deveria e, assim, depende do estado para ter o mínimo de subsistência, apesar de sua evidente independência e capacidade de se virar. Mas há algo por trás da rebeldia e da atitude anti-social que eleva a personagem para além de uma jovem adulta revoltada que nunca saiu da adolescência direito. Parte do combustível de “The Girl with the Dragon Tattoo” provém dessa fonte, enquanto o resto vem do envolvente roteiro de mistério. Assassinatos, desaparecimentos, ideologias conservadas e conflitos de família numa mesma narrativa, temas que renderiam ótimas histórias por si unidos em prol de um início bastante complexo.
Mikael Blomkvist (Daniel Craig) passa por tempos turbulentos. Um artigo seu denunciando um empresário magnata é levado à corte e resulta em uma derrota desastrosa para o jornalista, que praticamente perde todo o seu patrimônio e dinheiro. De repente, um inesperado amparo apresenta-se para Mikael na forma de uma proposta de trabalho vinda de um milionário da região, Henrik Vanger (Christopher Plummer). A tarefa é investigar o desaparecimento de uma garota da família usando o ímpeto pelo qual o jornalista ficou conhecido, com um porém: a garota sumiu 40 anos antes sem deixar pistas.
A família Vanger é dona de uma série de empreendimentos, empresas e, é claro, uma fortuna incontável. O porém é que os vários irmãos, primos, sobrinhos e parentes não se falam direito. Alguns falam com uns e odeiam outros a ponto de não trocar palavra alguma, embora morem todos na mesma ilha. Mikael é um estranho completo remexendo nos esqueletos de pessoas que nem mesmo gostam dele ou tiveram tempo de conhecê-lo para formar uma opinião. É mais fácil para eles simplesmente rechaçarem ou se fecharem ao estranho do que qualquer outra coisa. Nada disso facilita o trabalho, porém é justamente este detalhe que deixa toda a situação mais interessante. Por que a garota sumiria dessa forma? O que terá acontecido a ela? Por que uma família unida nos negócios é tão distante? Como Lisbeth entra nesse mistério? Quais as chances de sucesso diante de tal tarefa homérica? Juntas, estas questões mantêm o espectador preso a “The Girl with the Dragon Tattoo”, ansioso e sem idéia de como juntar as peças.
Outro aspecto relevante é o contraste entre Lisbeth e Mikael. Tudo bem, a aparência da garota chama a atenção de qualquer forma e em qualquer lugar, mesmo sem alguém com quem comparar. No entanto, a figura do protagonista masculino traz uma maior força às duas facetas de sua pessoa: a externa, física; e a de personalidade, em termos de atitude. Ele está para o padrão da maioria dos filmes por aí como ela está para a morte de muitos estereótipos. O fato dos dois serem de sexos opostos, inclusive, faz do contraste um ponto ainda mais notável. Se ela passa longe de muito do que se conhece sobre mulheres na ficção, é ainda mais distante da figura masculina. E não digo isso por motivos de protagonismo feminino e discurso socialmente consciente, mas porque realmente são mundos diferentes dividindo o mesmo espaço e amplificando o fator humano já complexo na forma das relações familiares dos Vanger. É uma questão de saber moldar e escolher como usar os jogadores, algo que “The Girl with the Dragon Tattoo” faz muito bem.
Melhor não comentar muito a fundo sobre como as diferenças dos dois são evidenciadas porque então seria exacerbado demais como os dois personagens são usados na trama. Não fica imediatamente claro como os dois estão ligados e há uma razão narrativa para isso: ambigüidade e mistério estrategicamente posicionados junto aos montes de informação sobre o mistério da garota desaparecida. Sem mais, não é necessário ressaltar mais que o ponto alto de “The Girl with the Dragon Tattoo” é sua história. Personagens interessantes estão diretamente ligados à uma história de desaparecimento que toma proporções surpreendentes, sendo resolvido com a inteligência e a cota de viradas essenciais ao gênero Suspense. O único porém se dá por conta da última ponta solta da trama, que quebra a fluidez e a fase boa concretizada pelo clímax. A conclusão da história é estendida anti-climaticamente, mas não como um problema surge do nada. Há precedente.
Com tudo que há de interessante em Lisbeth Salander, ainda resta espaço para qualidades não exatamente positivas. A trama deixa isso claro: ela é uma pessoa capaz, mesmo com todas as adversidades pesadas que se apresentam. Entretanto, às vezes essas demonstrações de poder passa um pouco do limite do sensato e entram num exagero conveniente, aparecendo justamente no momento em que a trama mais precisa de uma solução genial dela para conseguir alguma informação ou decifrar algo. Cada um destes momentos de Mary Sue aumentam a impressão negativa de que sua personagem é um refúgio para quando o mistério complica demais, o que acontece justamente no final super-estendido. Tirando isso, Lisbeth é a personagem interessante descrita antes e “The Girl with the Dragon Tattoo”, um suspense envolvente desde os primeiros momentos de conflito na vida pessoal do protagonista até o desenvolvimento do mistério e sua eventual conclusão.